Para Hannah Arendt, a Revolução Americana foi um êxito social. E a Revolução Francesa foi um fracasso político.
Por que? Porque a Revolução Americana não teve a questão social como objetivo. E a Revolução Francesa, que se ocupou com a miséria, soçobrou no terror. De igual modo como a Revolução Russa foi engolida pelo stalinismo.
O livro de Arendt, que trata do tema, é Sobre a Revolução. Uma reflexão em torno da liberdade. Os norte-americanos a teriam realizado com sucesso. E os franceses? Robespierre falou no despotismo da liberdade. Para a filósofa judia, a França errou quando quis resolver a pobreza em evento revolucionário.
Ela defende que os americanos já tinham equacionado a questão social em 1776. No pacto de Mayflower, firmado pelos colonos que desembarcaram no Novo Mundo. E na Lei de Terras que promoveu a ocupação do Oeste. Ou seja, os norte-americanos estavam socialmente libertados. E, assim, fundaram a liberdade. Na revolução.
A Revolução Francesa buscava o ideal de fundar a liberdade. Mas frustrou-se na imediaticidade do sofrimento coletivo. Para Arendt, a ruptura totalitária tem a ver com a herança jacobina da revolução social. Feita não para libertar o homem da tirania. Mas para libertá-lo da fome.
Penso que fome se resolve com reforma. E não com revolução. E que tirania se neutraliza com instituições democráticas. E coragem cívica. Ações livres são as que se pratica no espaço público. Isto é, no exercício da participação democrática. Participação para que?
Participação para garantir a democracia. E não para implantar a tirania. Deixando a imprensa livre. Sem afrontar o STF. Sem desvirtuar a função do Exército como órgão de Estado. Bloqueando a política de trocas com o Parlamento.
A esfera pública de afirmação cidadã não pode entrar em dieta. E ser entregue à gestão de coisas localizadas. Hoje, no Brasil, ou se trata de interesses corporativos ou se cuida de privilégios do estamento burocrático. De que falava Raymundo Faoro.
No espaço público, homens livres se expressam pela palavra e pela ação. E não pelas armas. O jacobinismo é um tipo subliminar de covid. Mais perigoso do que o vírus. Porque a vacina contra a tirania não vem da Anvisa para a população. Vai da população contra o tirano. Mas, para isso, é preciso organização social. Consenso político. Vestidos de obstinação cívica.
Onde está o pacto de Mayflower brasileiro? O Império de Pedro II foi longa noite de sono gerencial. Em que estruturas econômicas e sociais permaneceram intactas. Inclusive a escravatura, Mesmo após a abolição. Essas estruturas não foram alteradas com a República Velha. A política do café com leite o comprova. E Getúlio Vargas? Fundador do Brasil moderno, sim senhor. Lei trabalhista, siderurgia, educação. E oito anos de ditadura de Estado Novo.
O jacobinismo brasileiro não precisou de revolução para aparecer. É nítido o desenho que encaminha o aparelhamento do Estado pelo Exército, a cooptação das Polícias Militares. E a servidão da PGR.
Em 2004, fotos de tortura em Abu Ghraib chocaram o mundo. Ao tomar posse, Barack Obama extinguiu a tortura como política de Estado. E patrocinou o encerramento da prisão de Guantánamo. Por que a maior potência da Terra se sentiu constrangida a cumprir o estatuto da ética? Segundo Arendt, argumentos morais não são apenas ideias.
Eles carregam consigo a materialidade que distingue o bem e o mal. E que faz com que as pessoas ajam sob consenso ou sob força. A violência responde rapidamente ao impulso perverso da má consciência. La mauvaise conscience de que falou André Malraux.
Por isso, Arendt pregava que, antes que se chegue à situação em que nada há a fazer, a ação política deve ser construída. No caso do Brasil atual, duas iniciativas, pelo menos, podem ser tomadas: a aprovação pelo Poder Legislativo do projeto em tramitação que proíbe a participação de militares da ativa em cargos no Executivo.
E a segunda iniciativa, assinatura de proposta programática reunindo o compromisso democrático das principais lideranças políticas, inclusive dos pré-candidatos em 2022. Uma espécie de Pacto Brasil no qual se consignaria consenso sobre questões básicas da economia e da sociedade brasileira.
Só existiu uma Revolução Americana.
Seus vários líderes tinham opiniões diferentes, como se vê na polêmica sobre o federalismo, porém sabiam convergir acima das divergências.
Existiram várias Revoluções Francesas, com divergências, umas contra outras.
Os próprios moderados girondinos se aliaram aos extremistas jacobinos para, juntos, derrubarem a monarquia e guilhotinarem o rei Luís XVI, a rainha Maria Antonieta e muitos aristocratas. Em seguida os jacobinos guilhotinaram os girondinos e os próprios jacobinos, chefiados por Robespierre e Danton, mataram-se entre si. Até quando a maioria da população, cansada de tantos guilhotinamentos, resolveu guilhotinar Robespierre e os últimos jacobinos.
Só existiu uma Revolução Americana e ela, em 1776, é anterior à Revolução Francesa de 1789. Portanto não houve influência da Revolução Francesa sobre a Revolução Americana e sim da Revolução Americana na Revolução Francesa. A prova disto é que os primeiros embaixadores dos Estados Unidos na França eram Benjamin Franklin e Thomas Jefferson, vindo da Revolução Americana e influenciando a Revolução Francesa ao receberem, na Embaixada dos Estados Unidos em Paris, os principais líderes da futura Revolução Francesa.
O radical Thomas Paine não conseguiu predominar na Revolução Americana e veio a participar da Revolução Francesa, quando quase foi por ela guilhotinado, sobrevivendo por influência da Embaixada dos Estados Unidos em Paris..
Por que várias Revoluções Francesas, contradizendo-se entre si, e uma Revolução Americana completando-se dentro de si mesma ?
Porque a Revolução Americana reivindicava, para os americanos, os mesmos direitos da Revolução Inglesa de 1689, o que era recusado pelos ingleses aos americanos.
Com o resultado de a Revolução Francesa, exausta por seus fratricídios, ser substituida por Napoleão Bonaparte que, sendo autoritário militar, conseguiu concluir a Revolução Francesa através da reforma do Estado francês, impondo à França o Código Civil, o Código Comercial e o primeiro banco estatal francês, o Banco da França, instituições, com atualizadoras reformas internas, permanecendo em vigência até hoje. Napoleão terminou derrubado por seus próprios êxitos, nas suas guerras contra seus vizinhos.
No Brasil o povo em nada participou da proclamação da república em 1889, conforme o testemunho de Aristides Lobo, um dos seus poucos líderes civis. As libertárias revoluções pernambucanas de 1817 e 1824 foram esmagadas, legando-nos os exemplos..
A proclamação da república brasileira em 1889 liquidou a monarquia e, com ela, o parlamentarismo que vinha tendo crescentes êxitos, como se vê no documentado livro de Joaquim Nabuco, Um Estadista do Império, com o arquivo do pai dele, o Conselheiro José Tomás Nabuco de Araújo, sobre as sucessivas reformas abolindo a escravidão e ampliando cada vez mais o acesso da população ao voto nas eleições.
A proclamação da república brasileira, liquidando a monarquia e o parlamentarismo, latino-americanizou o Brasil e gerou o bonapartismo de sucessivos generais em golpes e contra-golpes de generais, como se viu em 1889, 1930, 1937, 1945 e 1964 instalando presidentes civis e depondo-os.
O povo brasileiro perdeu a memória monárquica. Rejeitou duas vezes o parlamentarismo nos plebiscitos de 1963 e 1993.
O Brasil vive hoje outro dos seus ciclos bonapartistas, com um sub-Napoleão no poder, enquanto a maioria da população quer outras eleições, que não serão novas e sim devolvendo o poder a Lula, anterior presidente. Enquanto isto a população brasileira envelhece, tanto quanto outros países, e derruba a floresta amazônica para ainda maior produção de grãos e de minérios para o Brasil exportar e sobreviver economicamente, com muitas dificuldades sociais e institucionais. Com muito pouca tecnologia própria, como se viu na pandemia da gripe covid coronavirus, tendo de importar centenas de milhões de dólares de vacinas estrangeiras. A brasileira só depois veio surgindo aos poucos.
A explicação é longa, porque minha própria longa vida de professor e pesquisador na centenária Faculdade de Direito do Recife e de cientista político na nova Universidade de Brasília, com várias viagens de estudante e professor em universidades estrangeiras, e assessoramentos na Câmara de Deputados e Senado Federal no Congresso Nacional me ensinaram ARS LONGA, VITA BREVIS como diziam os antigos romanos com mil anos de experiências de monarquias e repúblicas.
Obrigado pela aula, Vamireh.
Dose dupla de inteligência – “Jacobinismo tropical” e o brilhante “comentário” que ensejou.
Parabéns a ambos: Luiz O. e Vamireh C.
Beleza de artigo de Luiz Otavio C. e de comentário de Vamireh C. E aceito os caminhos indicados pelo autor do artigo, da maneira como os entendi: 1. para evitar a tirania é preciso a participação dos cidadãos; 2. para evitar a tirania é preciso conter (por ação legislativa) o aparelhamento extenso da máquina administrativa por militares; 3. para evitar a tirania é preciso formular e assinar (ou de algum modo se comprometer com) um conjunto mínimo de consenso em política econômica e social. Não fica claro quem deveria formular e assinar esse possível consenso: eventuais pré-candidatos? As lideranças partidárias? Lembro que, em países em que “partido” tem algum sentido programático (e não apenas “saco de gatos”) essas negociações de um programa de governo (incluindo distribuição das indicações de Ministros) são feitas por líderes dos partidos. Até escrevi aqui na “Será?” um artigo sobre a última coalizão na Alemanha. Mas são situações tão diferentes…
Grato p0r sua leitura, Helga.