Amigos, vocês já leram o último livro de Ariano Suassuna, lançado “post mortem”?  Eu sim.  E como tenho dois ensaios dedicados a ele, e já o incluí na minha lista de notáveis (Eu e ELES – VI), além de, por outro lado, desconfiar de que muitos dos seus incensadores não encararam a extensa e até certo ponto misteriosa obra, assumo aqui o risco de comentá-la. (*)

O escritor conterrâneo José Nêumanne Pinto, ao referir-se ao livro, fala de um “roman à clé”, além de outros epítetos elogiosos.  Vários críticos abalizados, como Carlos Newton Júnior e Roberto Mota, fazem-lhe comentários, convertidos em epígrafes. Todos, no entanto, vão no mesmo clima enigmático da obra avaliada, sem aquela clareza que Ortega y Gasset define como “a cortesia do pensador”.

Sem dúvida, para dissecar o longo texto, de mais de mil páginas, seriam necessárias não apenas uma, mas muitas chaves.  E não tenho pretensões a tal sortilégio. Meu propósito é apenas identificar alguns personagens, perquirir a nebulosa fronteira entre ficção e realidade, tentar compreender algumas motivações do autor.  E ao desfecho, como principal contribuição deste trabalho, repor em questão os temas, ou melhor, os dilemas centrais da vida do nosso escritor, tão bem identificados pelo seu mais notável analista, Carlos Newton Júnior, e sumarizados na fórmula: “o Pai, o Exílio e o Reino”.

O livro é um misto de romance, autobiografia, ensaio político-filosófico, memorial poético, profissão de fé.  Dedicado a Maria, mãe de Deus, de quem o autor sempre se considerou devoto, nem de longe beira a beatice.  Ao contrário, abriga convincentes páginas de erotismo, seja na descrição de cópulas de animais – jumentos e bodes – seja na exaltação de fêmeas humanas, ou na profusão de símbolos e desenhos fálicos e vulvares, constantes das gravuras que enchem todas as suas páginas.  Chega mesmo ao fescenino, quando reproduz glosas irreverentes de cantadores do Nordeste.

Quanto aos seus personagens, além dos escritores que cultua – Euclides da Cunha, Augusto dos Anjos, Machado de Assis, Lima Barreto, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, Albert Camus e outros – abre espaço para a “prata da casa”: Bráulio Tavares, Ângela Bezerra de Castro, César Leal, Hermilo Borba Filho, Liedo Maranhão…  Até o poeta Luiz Correia, meu companheiro da “Geração 59”, merece a sua referência, por conta de uma imagem poética que ele louvava: “em cima da carroça estava a fêmea / e em seu corpo acendia um sol de pelos / feroz ornato, onírico diadema”.

Sobre sua visão político-filosófica, registre-se a idílica opção pelos pobres e sertanejos deserdados, o sonho de um imaginário reino do Sertão, o repúdio aos “capitalistas”, a simpatia pelos povos “morenos” – latino-americanos, árabes, turcos, africanos, orientais – em contraposição aos “brancos” – anglo-saxões, nórdicos, eslavos.

Voltemos aos personagens.  A figura central, Dom Pantero, com quem o autor do livro se identifica, é cercada por heterônimos, seus “irmãos”: Altino Sotero surge como o autor de sua poesia, Auro Schiabino do romance, Adriel Soares das peças teatrais, Aribál Saldanha dos ensaios e artigos.  Os protagonistas das tragédias de 1930 também estão disfarçados: o presidente da Paraíba, João Pessoa, é Jayme Pessanha Villoa, prefeito da cidade imaginária de Assunção, João Sotero é João Dantas, seu assassino, e João Suassuna, pai e “rei” na fórmula de Carlos Newton, é João Canuto, o Cavaleiro Heroico.  Por outro lado, Eliza (de Andrade) é anagrama de Zélia, sua esposa e inspiradora de um dos mais belos sonetos reproduzidos no livro.  Resta em mistério a figura de Liza Reis, amor de adolescência, por quem o herói inexplicavelmente foi rejeitado, e recorda com frequência.

Imagino também que Pancrácio Cavalcanti e Porfírio de Albuquerque são cognomes de pessoas, convenientemente disfarçadas, em razão da participação significante que têm nos diálogos explicativos do enredo. Pois a narrativa corre em forma de interrogatório, à semelhança do romance “A Pedra do Reino”. Infelizmente, não consegui decodificá-los.  E, também à semelhança d’A Pedra do Reino, a história termina em aberto: a apresentação cenográfica, na preparação da qual todos os esclarecimentos e todas as justificativas são prestadas, não se realiza.

Ressalte-se, por fim, a questão da obscuridade, apenas tangenciada no início.  Escolheu o escritor, sem razão aparente, uma representação em estilo “gótico” para a letra N, que dificulta a leitura, quando aparece no meio da palavra.  Além disso, adota, em alguns trechos, uma grafia arcaica, e ainda mais, artificial, pois que, em momento algum da história da língua portuguesa, escreveu-se MAÃOS com dois AA, RROSAS com R dobrado na inicial, SSENHOR, e outras extravagâncias.  Que motivação pode haver para isso?  Só me recorda a grande pulha que impõe aos seus leitores o famoso Julio Cortázar, no seu “Rayuela” (O Jogo da Amarelinha), em edição comemorativa do cinquentenário, páginas 407 a 409. Quem as decifrar merece um prêmio.  Em Ariano, diria que se trata de um comportamento contraditório à sua filosofia de vida e à sua proposta artístico-literária.

Para encerrar, uma referência laudatória aos componentes poéticos do livro. Embora tenha demorado a publicar seus versos, Ariano sempre afirmou que eles eram a parte mais importante de sua obra. Já bem-sucedido e famoso é que aceitou publicar “O Pasto Incendiado”, sob o pseudônimo de Albano Cervonegro, forma sofisticada de Ariano Suassuna. E vários dos belos sonetos desse livro aparecem em “Dom Pantero no Palco dos Pecadores”.  Como também, embora disfarçados em textos corridos, outros poemas e glosas, em “martelo agalopado”, “martelo gabinete” e “galope à beira-mar”, formas poéticas praticadas pelos cantadores nordestinos, que ele domina com maestria.  É a parte mais amena da sua obra terminal.

O perdão que não veio

Na cronologia do autor, constante das páginas finais do livro, registra-se, no ano de 1981, o momento de sua despedida da atividade literária e jornalística, para “tentar reunir os estilhaços em que fui me despedaçando, e ver se ainda é possível recompor com eles alguma unidade”.  Mas não se faz menção ao seu retorno, quatro anos depois, com um “mea culpa”, acompanhado de um romântico engajamento nas campanhas da esquerda que ele tanto criticara, culminando, em 1990, com sua filiação ao Partido Socialista Brasileiro.

O fato é que Ariano, profundamente marcado pela morte do pai aos três anos de idade, viveu longo tempo em conflito com liberais e esquerdistas, adversários de João Suassuna, e chegou a proclamar-se monarquista e revelar simpatias ao presidente Garrastazu Médici, na fase mais sombria da Ditadura (embora protegendo e abrigando amigos perseguidos pelos militares, como José Laurênio de Melo e outros). Aos simpatizantes dos comunistas, rotulou de “veados cor de rosa”. E rompeu com o Movimento de Cultura Popular – MCP, no início dos anos 60 do passado século, por divergir de sua orientação político-pedagógica.

Os quatro anos de recolhimento e reflexão lhe fizeram bem. Abandonou o monarquismo, como alegou, ao saber que o herdeiro do trono do Brasil era membro da TFP (Tradição, Família e Propriedade), organização extremamente reacionária e conservadora. E se reconciliou com a intelectualidade, contra quem se debatera, atormentado e inseguro. Tenho a honra de ter, minimamente, contribuído para isso, com meu ensaio “A Solidão de Ariano Suassuna” e as poucas conversas que tivemos, como posso deduzir de suas próprias palavras, em entrevista ao Diário de Pernambuco (16.06.87):

…Mas veja você quanto vale uma palavra de compreensão.  Isso foi assim até que um paraibano, Clemente Rosas, que mora no Recife, e que é “do lado de lá” (olhe que eu falo no presente porque essas coisas na Paraíba são muito fortes), neto do secretário de João Pessoa e filho do secretário de José Américo de Almeida, escreveu um artigo onde, pela primeira vez, eu vi analisada a minha posição e a minha pessoa, por uma pessoa do outro lado, sem aquele desejo de machucar e insultar que eu sempre via nos outros.  Esse artigo me ajudou muito a abrir os olhos e, pela primeira vez, admitir uma coisa que era normal, mas que eu não admitia: que meu pai tivesse dado um erro político.

A sua nova “conversão” – pois a primeira foi ao Catolicismo, ainda na juventude, quando passou um ano em Taperoá (PB), curando-se de uma tuberculose, e declarou-se “devoto de Nossa Senhora” – levou-o a afirmar que, no exercício da virtude cristã do perdão, esforçava-se agora para conseguir perdoar os assassinos do seu pai.  E cheguei a pensar que a velha querela que resultou nas mortes trágicas dos três Joões – Pessoa, Dantas e Suassuna – estivesse, enfim, prescrita. Sua última obra me mostra agora que não.

Em várias passagens, pela boca dos seus personagens, rotula de “viúvas” os partidários de João Pessoa, inconsoláveis com morte do Presidente do Estado, chama de equivocados e invejosos os adversários de sua família, e adota a narrativa dos correligionários do seu pai sobre o episódio da invasão da residência de João Dantas, deflagrador das três tragédias.  Segundo essa narrativa, João Pessoa foi o responsável direto pela invasão, sendo, portanto, o vilão da história (daí certamente o cognome “Jayme Pessanha Villoa”).  Ora, há uma outra versão para aqueles fatos, sobre os quais apresento dois testemunhos.

O primeiro é o de Mateus Gomes Ribeiro, meu avô paterno, secretário de finanças da Paraíba, próximo de João Pessoa, mas sem vinculação partidária. Morreu quando eu era ainda criança, mas meu pai, também apartidário, me transmitiu: João Pessoa não ordenou a invasão, e dela só tomou conhecimento “a posteriori”. Não a condenou, depois, “para que João Dantas não pensasse que eu estava com medo dele”.  Comportamento típico da concepção de macheza da época.

O segundo depoimento é de meu tio materno, Mário Rosas, estudante do Liceu naquele momento.  A admiração de João Pessoa pela classe média e pelos estudantes da capital beirava o fanatismo, e a agitação crescia com as agressões e ameaças, inclusive de morte, pelos jornais, entre os dois inimigos.  E formou-se um movimento que culminou em passeata até onde morava o “inimigo da Paraíba”. Subiram as escadas da pensão, arrombaram a frágil porta do quarto e começaram a jogar os livros de João Dantas na calçada (meu tio não subiu, ficou apenas assistindo ao espetáculo). E, com o pretexto de   manter a ordem, veio a polícia, que promoveu uma devassa no quarto, e apreendeu um diário e cartas pessoais do seu ocupante, a essa altura refugiado em Olinda –PE.  A simples ameaça de divulgar no jornal do Estado esses textos – meros bilhetes amorosos, confissões pessoais com vagos tons eróticos – dramatizada por áulicos e sectários e pela mentalidade moralista da época, causou a indignação que levou João Dantas ao seu gesto extremo, e desencadeou os que se seguiram.

Ariano sempre se revelou inseguro a respeito de sua obra póstuma, que refez várias vezes.  Chegou a temer não concluí-la, e me ponderou, uma ocasião, que, se Deus lhe dera a ideia do trabalho, haveria de dar-lhe tempo e forças para levá-lo a termo, o que acabou não ocorrendo.  É lícito imaginar-se, portanto, que talvez ainda a alterasse, dando guarida ao anunciado sentimento do perdão.

Para um menino de três anos, a ideia da morte não parece ser tão nítida.  O clima em que foi criado, com sua mãe, Dona Ritinha, em luto perpétuo, o exílio no Recife e a hostilidade dos partidários de João Pessoa, que atribuíam ao pai dele, injustamente, a responsabilidade por um imaginário complô para matar o seu ídolo, podem ter contribuído para a obsessiva imagem do Cavaleiro Heroico, senhor do Reino de Acahuan, imortalizado em seu mais belo soneto, que reproduzo ao final deste comentário.

Poucos escritores brasileiros receberam, em vida, a glorificação de Ariano Suassuna. Sua peça mais popular teve três versões para o cinema, sua obra foi tema de escolas de samba do Rio e de São Paulo, recebeu o título de Professor “Honoris Causa” de várias universidades do Nordeste, seus livros foram traduzidos e publicados no exterior.  Mas tudo isso não parece ter sido suficiente para exorcizar os seus fantasmas e fazê-lo alcançar o seu desiderato de cristão. O perdão aos inimigos não veio.

O REINO DE ACAHUAN

(Transcrição de memória)

Aqui morava um rei quando eu menino / Vestia ouro e castanho no gibão / Pedra da sorte sobre o meu destino / Pulsava junto ao meu seu coração // Para mim seu cantar era divino / Quando ao som da viola e do bordão / Cantava com voz rouca o desatino / O sonho, o riso e as mortes do sertão // Mas mataram meu pai. Desde esse dia / Eu me vi como um cego sem seu guia / Que se foi para o sol transfigurado // Sua efígie me queima.  Eu sou a presa / Ele a brasa que impele ao fogo, acesa / Espada de ouro em pasto ensanguentado.

 

(*) Subjetivismo e História: Correio das Artes, 09.07.78 e Jornal do Commercio, 17.09.78. A Solidão de Ariano Suassuna, Correio das Artes, 27.09.81, Revista Confidencial Econômico, Recife, novembro de 1981 e Folhetim, São Paulo, 03.01.82. Eu e ELES – VI, Revista Eletrônica “Será?”, agosto de 2019.