Clemente Rosas

Ariano Suassuna.

VI – Ariano Suassuna

Quando ouvi falar, pela primeira vez, em Ariano Suassuna, na década de 50 do século passado, tinha quinze ou dezesseis anos, e estava ainda no curso secundário.  O Teatro do Estudante da Paraíba encenava, no Teatro Santa Roza, de João Pessoa, a sua peça “Cantam as Harpas do Sião” (depois rebatizada para “O Desertor de Princesa”), uma tragédia.  Os amigos Hermano José, pintor, e Orley Mesquita, poeta, me levaram até lá.  Não cheguei a encontrá-lo, mas soube que ele lá esteve, e deixou bilhetes de agradecimento para todos os integrantes do elenco.  Talvez tenha sido a primeira peça sua a ser levada ao palco, e este fato o comoveu.  Nunca soube de quem foi a iniciativa daquela encenação.

Voltei a ter notícias dele já no Recife, na década de 60, trabalhando na SUDENE, depois do seu sucesso com o “Auto da Compadecida” e do seu envolvimento com o MCP – Movimento de Cultura Popular, do qual acabou por afastar-se, por discordar da proposta de alfabetizar adultos politizando-os, e usar as armas da cultura – teatro, cinema, música – para conscientizar as massas.  Com a radicalização dessa tendência, ele e o escritor Hermilo Borba Filho romperam com o MCP.  Hermilo chegou a escrever uma peça de crítica ao Movimento, “A Bomba da Paz”, da qual veio a arrepender-se depois.

Foi a fase “direitista” de Ariano, para a qual contribuíram talvez suas origens entre aqueles que Vinícius de Moraes chamou de “barões da terra”, e mesmo a remota tragédia familiar da morte do pai, em 1930, por pessoa ligada aos “liberais”, correligionários do presidente João Pessoa, este também assassinado.  Embora tenha abrigado em sua casa e protegido intelectuais amigos perseguidos em 1964, declarou-se monarquista, e demonstrou simpatias ao presidente Garrastazu Médici.

Os anos se passaram e eu, voltando a escrever depois de um silêncio de dez anos, publiquei no “Correio das Artes”, suplemento do jornal paraibano “A União” (09.07.78), e no Jornal do Commercio (17.09.78), o artigo “Subjetivismo e História”.  Nele, criticava a visão negativa da Revolução de 30, com motivação em razões pessoais e subjetivas, por parte de intelectuais como Virgínius da Gama e Melo e o próprio Ariano.  Três anos depois, tendo acompanhado a trajetória daquele de quem iria merecer a honra de ser amigo, voltei ao tema, ensaiando uma análise de seus conflitos íntimos nesse período.  O ensaio foi publicado no Correio das Artes (27.09.81), na revista Confidencial Econômico, do Recife (vol. 12, nov. 81), e no Folhetim, suplemento da Folha de São Paulo (03.01.82).  Seu título: “A Solidão de Ariano Suassuna”.

Ele se havia retirado da vida intelectual por prazo indeterminado, alegando precisar “…tentar reunir os estilhaços em que fui me despedaçando, e ver se ainda é possível recompor com eles alguma unidade” (artigo “Despedida”, publicado no Diário de Pernambuco em 09.08.81).  E dois anos antes, eu o havia visitado, na companhia do meu saudoso amigo, o arquiteto Armando de Holanda, que ia tratar com ele um assunto de trabalho.  Eu havia sabido, através do historiador José Octavio de Arruda Melo, companheiro de colégio, que ele tinha lido meu primeiro artigo e, apesar da crítica ali feita, o havia apreciado.  Era pois o momento de conhecê-lo pessoalmente.

Após ser apresentado por Armando, e tendo sido rapidamente exaurido o assunto de trabalho entre os dois, ele voltou-se para mim. Queria agradecer a forma respeitosa e empática como o havia tratado no meu texto.  E procurou justificar-se: pela devoção incondicional ao pai, que perdera aos três anos de idade, e pelo tratamento cético, dado no seu livro “A Pedra do Reino”, aos intelectuais “engajados” e à rebeldia estudantil. Neste último caso, dispôs-se até a alterar (e o fez) o trecho do romance que me causara a má impressão.

Quase vinte anos depois, ele pôde me provar o quanto havia levado a sério a minha crítica.  Indo ao lançamento da edição francesa do livro na Academia Pernambucana de Letras, recebi meu exemplar com a seguinte dedicatória:

– Para Clemente Rosas, chamando a atenção para a página 260, onde cumpri a promessa que lhe fiz, há muitos anos.  Com o abraço amigo de – Ariano Suassuna. 21.05.98.

Pois, nesse meio tempo, nos havíamos tornado amigos. Visitei-o algumas vezes.  Com seu aconselhamento, e os livros que me emprestou, conheci melhor a literatura russa – Gógol, Tolstoi, Dostoievsky, Pushkin – e até recebi, de presente para meu pai, uma cabrinha de sua criação em Taperoá, que lá fomos buscar, para a nossa fazenda, no Curimataú paraibano.

Depois, já vivendo ele o desconforto e as exigências da fama, achei conveniente afastar-me, para não ser incômodo.  Mas guardo a satisfação de ter contribuído para a sua revisão de posições e o seu retorno à literatura e à política, ainda que de forma um tanto ingênua, neste último caso.  Como chegou a me dizer:

– Eu me preparei a vida toda para ser escritor.  Qualquer vereador de cidadezinha me enrola…

De seu primo próximo, Sebastião Simões Filho, grande técnico e humanista com quem tive também o privilégio de conviver, ouvi, sobre meus escritos:

– Rapaz, você entrou na cabeça dele!  Como conseguiu isso?  Espiritismo?

E do próprio Ariano, em longa entrevista a Leda Rivas no Diário de Pernambuco, caderno “Viver”, 16.06.87, após os quatro anos de silêncio, recebi o reconhecimento que aqui transcrevo:

– …Mas veja você quanto vale uma palavra de compreensão.  Isso foi assim até que um paraibano, Clemente Rosas, que mora no Recife, e que é “do lado de lá” (olhe que eu falo no presente porque essas coisas na Paraíba são muito fortes), neto do secretário de João Pessoa e filho do secretário de José Américo de Almeida, escreveu um artigo onde, pela primeira vez, eu vi analisada a minha posição e a minha pessoa, por uma pessoa do outro lado, sem aquele desejo de machucar e insultar que eu sempre via nos outros.  Esse artigo me ajudou muito a abrir os olhos e, pela primeira vez, admitir uma coisa que era normal, mas que eu não admitia: que meu pai tivesse dado um erro político.

Enfim, decidido a voltar à vida literária e política, a ela entregou-se com paixão.  Na campanha de Jarbas Vasconcelos à prefeitura do Recife, em 1985, encontrei-o, com seus familiares, num comício.  Não sou dado a expansões, mas, avistado por ele, fui de pronto convocado a uma participação mais intensa:

– Venha pra cá, você também!

E de mãos dadas com ele, mulher e filhos, entrei no coro dos jingles eleitorais da manifestação.

Reconciliado com o Dr. Arraes pela mão do seu amigo próximo Maximiano Campos, genro do velho, serviu ao governo dele, e depois ao de Eduardo Campos, filho de Maximiano.  Sua atividade quase exclusiva consistia nas “aulas-espetáculos”, realizadas no interior nordestino e nos grandes centros do Sudeste. Nelas, de forma cativante, pregava a valorização da nossa cultura popular e a defendia das macaqueações e das alienações do “som universal” e outras pulhas.

No evento final de sua morte, já popularizado pela televisão – apesar de sua resistência inicial e de suas prévias exigências – e glorificado pelas Escolas de Samba, fui ao seu velório, no salão nobre do Palácio do Governo.  Varando uma multidão incalculável, consegui chegar perto e cumprimentar seus parentes: duas mocinhas, possivelmente suas netas, o pintor Dantas Suassuna, filho, e a viúva Zélia.  Esta eu já havia encontrado em minhas visitas, mas era natural que, com tantos anos transcorridos, não me reconhecesse à primeira vista. Identifiquei-me, beijei-lhe a testa, e ouvi dela, para minha grande surpresa e gratificação, a frase:

– Ah, ele o admirava muito!