Louise Jane Jopling – by Sir John Everett Millais.

 

I

Ela hoje deve estar completando a idade que eu tinha quando a conheci. Se não for a mesma, é quase. Durante aqueles anos de aproximação, ela gostava de dizer que, desde menina, o aniversário dela coincidia com um dia muito frio. Eu argumentava que isso a reportava a uma alma genuinamente russa, a um elemento eslavo que se escondia por baixo da camada judaica. Ela achava graça, mas relutava em concordar comigo. “Sou judia medular. Não vejo o que eu possa ter com cossacos nem mujiks. Eles eram os inimigos.” Eu brincava. “E essa sua intensidade, de onde vem? Não imagino uma sheine meidale de Anatevka com esse brilho no olhar, com esse fogo na alma. Posso não ser o Conde Vronsky, mas você tem tudo a ver com Anna Kariênina.”

Isso foi logo no começo, quando ainda vivíamos aquela loucura da pandemia. Hoje as pessoas dizem que o mundo deu um salto de trinta anos nos últimos dez – justamente por causa do coronavírus. Não duvido, mas isso já não me preocupa.

O que sei é que na época eu não era mais um menino. Os 63 anos de então pesavam mais do que os 73 de hoje e as pessoas estavam muito confusas, a começar por mim. Eu tinha voltado dos Estados Unidos há pouco tempo. Foi o acaso que fez com que a gente se encontrasse num empório. Sendo ela vistosa e com um jeitão despachado, peguei um queijo duro na gôndola e perguntei se ela o recomendava. Ela disse que não sabia grande coisa a respeito, que comprava um similar nas raras vezes que fazia fondue, mas que ia pesquisar no telefone. Eu não a impedi, talvez movido pela convicção de que tudo o que começa com comida normalmente acaba bem. Ela nem tinha terminado de ler aquele arrazoado sobre leite e raça de vaca quando eu resolvi ousar além. Apesar de estarmos com máscara, ela pareceu bem intrigada quando eu falei de minha frustração. “Que pena não poder retribuir sua gentileza com um café no primeiro andar. Essa cidade é ingrata quando nem com um balcão a gente pode contar.” Ela perguntou de onde eu era e se saiu com o que já ouvi muitas vezes. “Do Nordeste, só fui até a Bahia.” Balancei a cabeça como quem a reprovava e ela foi rápida. “Se você quiser, passo pelo caixa, pago isso aqui e a gente toma um café no vizinho, na mesma calçada.” Indiferentes ao desconforto da situação e à má qualidade do café, a conversa foi longa. Combinamos de nos ver depois. Quando nos despedimos, lamentei que não estivéssemos indo para o mesmo endereço. Nasci sonhador e vou morrer sonhador. Mas quase sempre vale a pena ser assim.

II

Pode soar meio cabotino, mas eu confesso que pouco me informei sobre a vida pessoal dela. Por natureza, eu falava mais da minha. Eu sabia vagamente do filho do primeiro casamento com um agora ortodoxo, que morava longe, em Bnei Brak. “Quando você começar a ser avó, vai ter uma enxurrada de netinhos, Kariênina.” Ela dizia que não tinha pressa alguma e, no fundo, eu achava que ela gostaria que o filho fosse menos religioso embora nunca tenha feito um reparo sobre seu jovem tsadik. Mas era claro que determinar os destinos do rapaz não estava na jurisdição dela. Tudo seria diferente se tivesse tido uma filha, mas ela nunca falou porque parou tão cedo para os padrões da fé do ex-marido.

As festas judaicas daquele segundo ano da pandemia já tinham ficado para trás quando um dia ela apareceu no meu prédio. Ainda pensei em descer e recebê-la no térreo, mas resolvi compor o ambiente às pressas para acolhê-la de uma vez por todas naquela cafua em que eu vivia. Mal abri a porta, ela me plantou um beijo tão febril que foi difícil convencê-la de que era prudente fechar a porta antes que fosse tarde. No crepúsculo, quando saímos para tomar um drinque, ela foi adorável. “Desculpe, mas estávamos precisando desse choque. Uma amiga me disse que o que começa platônico, platônico fica. Isso era tudo o que eu não queria. Nem você, espero. Mas do jeito que ia…” Eu ainda certifiquei o novo estado de fato. “Só falta agora a gente fugir para a Itália como Kariênina e Vronsky. Causar um escândalo bem grande, esperar cair no esquecimento de todos para depois voltarmos para cá, quando Veneza perder seus encantos e você me reduzir ao que eu sou: um schnorrer sem rumo.”

Naquela tarde-noite com cara de primavera, tomávamos nosso espumante favorito quando ela me perguntou o que eu vira nela. Sem poder beijá-la em público, ou pelo menos sem devê-lo, eu fiz uma cara de desalento, como quem pedia uma pergunta menos difícil. “É que eu gosto de ser levada a sério, sabe?”, disse me fitando nos olhos. Na hora, tive um pressentimento de que seria por essa fresta que passaria um vento frio. Hoje talvez isso me preocupasse menos. Mas eu tinha sido até então um cara de baixo comprometimento com as pessoas em geral. Vinha de relações longas, mas razoavelmente distantes em que eu não desviava de minha individualidade para fazer concessões facilmente. Disse que sim sem muita convicção, que achava legal que ela fosse intensa, mas não devo tê-la convencido. Só não dava para imaginar que uns dois anos mais tarde, quando afinal tínhamos ajustado um convívio, a terra tremeria sob nossos pés trazendo consequências que precipitariam a crônica de nossa história .

III

Foi perto do fim do ano de 2023 que ela me enlaçou numa tarde de sexta-feira, seu dia favorito, e propôs que fôssemos passar uma semana no Chile. “A Ilana vai com um amigo. O cara não é daqui. Não é do nosso meio, e ela sabe tudo sobre nós. Oficialmente, vamos só nós duas. Captou?”

Ilana era uma de suas melhores amigas. Se não a favorita, pelo menos era a mais disponível. Ressurreta de um casamento manco com um sefaradita, vivia uma espécie de libertação. A morte do pai e a demência da mãe a tinham livrado das peias domésticas. O casal de filhos já não a preocupava no dia a dia. “A mãe dela está em boas mãos. Duas cuidadoras se revezam. O convênio tem bancado tudo. Você vai gostar do amigo dela.”

No avião, constatado que o terreno estava seguro e que não teríamos conhecidos à volta, eu dei dois dedos de prosa com Ilana, que logo trocou de lugar comigo para viajar ao lado de Alberto. Eles pareciam se entender. Sem nunca ter tido uma atividade que não fosse a de voluntariado comunitário, Ilana era boa praça e parecia já estar bem afinada com Alberto. “Ele era meu endócrino. Começou assim, mas aí o regime foi mudando.” Ele era um pouco mais velho do que eu. “Estou com dois ou três lugares em Santiago onde podemos comer bem. Soube que você é um bom garfo.” De fato, era uma credencial e tanto para ambos.

Sobrevoávamos o Aconcágua no entardecer e a encosta estava cor de rosa. Se eles surfavam uma situação tranquila para se assumir em público, nosso caso era diferente. Tanto ela quanto eu tínhamos que nos pautar pela prudência para não causar abalos em nossas vidas familiares. Isso nunca tinha sido combinado, mas obedecia a um código tácito. Enquanto estivemos em Santiago, tudo correu bem. Éramos dois casais com ritmos compatíveis, alternando os momentos a dois com as conversas a quatro, geralmente à hora do jantar. Como era inevitável descermos a Valparaíso, contratei uma van com um motorista que faria conosco o trajeto da costa, onde almoçaríamos em Viña del Mar. Vendo o porto à distância, Salgado, o chofer, nos instruiu a descer as ruelas grafitadas: a Condell, a Esmeralda… até a praça do Armada. Um grupo de paranaenses fazia o trajeto conosco e chegamos a nos revezar em tirar fotos uns dos outros. O dia era bonito, o céu de um azul prístino.

“Cansada, Kariênina?” Ela não pôde responder. Naquela hora, ambos achamos que estávamos tendo uma crise de labirintite. Até que ouvimos uma sirene ecoar com estridência e tudo ficou óbvio. A terra começou a sacudir. Agarrado à grade, que trepidava muito, eu a sentia me apertar o que podia. Ilana e Alberto, à nossa esquerda, personificavam o pavor. Já os paranaenses, majoritariamente jovens, se divertiam com aquilo como se um terremoto integrasse um pacote de atrações andinas. Como tal, filmavam tudo –  como fazem os turistas diante da primeira nevasca.

IV

Eu não preciso dizer o que foi o terremoto de Valparaíso da primavera de 2023. Hoje está tudo bem documentado e é parte da história dos sismos. Levar três dias para conseguir voltar a Santiago foi o de menos. Ajudamo-nos no que pudemos e não demos trabalho à Defesa Civil, apesar de eu e Alberto estarmos tecnicamente na faixa de idosos. Tão logo se restabeleceram as comunicações, quase na madrugada seguinte, depois do terceiro alerta de tsunami, falamos com os nossos para tranquilizá-los e ninguém se dava conta da dimensão do estrago nas partes baixas da cidade, muito embora o terremoto tenha sido registrado até nos prédios altos da avenida Paulista.

As companhias aéreas tinham colocado voos extras à disposição, apesar de que Santiago tenha sofrido comparativamente pouco. Karênina já estava com tudo pronto para voltarmos na manhã do dia seguinte quando um telefonema a deixou visivelmente inquieta. Entre bem humorada e pesarosa, como só ela sabe ser, lembro de cada palavra. “Acho que vou ter que dar uma boa explicação se quiser entrar em casa. Lembra dos filminhos dos paranaenses? Pois é, viralizaram no Brasil e no mundo.” Trêmula, abriu no Youtube um link com meia dúzia de palavras chave. Pelo menos três vídeos documentavam os lances finais das ruelas grafitadas à hora do sismo. Em um deles, nós éramos a grande atração – como se houvesse intencionalidade de cravar a câmera sobre aquele estranho bailado que nos sacudia temerariamente. “Para o que der e vier, vamos triunfar com estilo. Ou naufragar de vez em águas profundas. E isso depois de sobreviver aos alertas de tsunamis.”

Demos um longo abraço olhando o Cerro San Cristóbal. Kariênina. O resto da história, bem, vocês também já conhecem.