Esta semana me reuni com três amigos. De longa data. Amigos contam-se nos dedos. Pois ali estavam meus dedos. Amizade antiga é como vinho. Aliás, é mais que vinho. Porque nos reconhecemos no olhar do amigo. Reconhecemos nossa própria vida na vida dele. No que pensamos juntos. Fizemos juntos. E, ao final do almoço, é como se concluíssemos: já que ele está aqui, e eu também, então estamos vivos.
O que estava por trás daquele encontro? Uma coisa fina, quebradiça, como um vidro de pouca espessura. Mas, ao mesmo tempo, forte. Inspiradora. Confiança. A ponto de, a certa altura, eu ter perguntado: o que diz-se nesta mesa fica aqui? Então, aí vai.
Coincidentemente, chegando em casa, olhei os livros na estante. Como quem não quer nada. Querendo. Minha vista parou em José Álvaro Moisés: A Desconfiança Política e seus Impactos na Qualidade da Democracia.
O país vive momento sensível de desconfiança. O presidente envolveu o Exército numa atuação fora de seu papel de órgão de Estado. E, mais grave, obrigou a Instituição a passar, fora do regulamento, o guardanapo na boca do general da ativa. Limpando, ou melhor, perdoando infração regulamentar para cuja prática ele, presidente, havia contribuído. Insólito ato político no aterro do Flamengo.
Agora, um executivo de empresa privada, na CPI da vacina, faz declaração incômoda. Que um militar da reserva, funcionando no Ministério da Saúde, participou de reuniões controversas sobre compra de vacina. Não é a farda que confere honradez e decência ao soldado. É o soldado que, expressando formação e convicção, honra a farda que veste. Portanto, fica logo claro que estamos tratando, aqui, de gente e não de corporação. Gente boa. E gente má.
Pois bem, abro o livro sobre (des)confiança política e qualidade democrática. Confiança é expectativa que se alimenta sobre o comportamento do outro. Abrangendo coordenação do governo na perspectiva da cooperação social. De que resulta indispensável coesão da sociedade. É daí que decorre a funcionalidade das instituições.
Ora, nada disso ocorre neste governo. Nem a coordenação federativa com os governadores, nem a inspiração política para usar máscara, nem o sentido de acolher a população nacional, como um todo; nem a previsibilidade psicológica de presidente desbocado. Ao contrário, o presidente atende apenas seus apoiadores. Inclusive confundindo critérios de escolha: um juiz terrivelmente evangélico.
Escreve J. Álvaro Moisés que democracias na Itália, Japão e Alemanha, se acham desconfortáveis com o cinismo. Fruto de corrupção e de burocratização da vida pública. Lembrei de Raimundo Faoro (Os Donos do Poder). O fato é que chegaram às mãos dos brasileiros valioso patrimônio político e institucional. A tradição de contratualismo de Locke, a energia filosófica do social liberalismo, a revolução dos founding fathers; a da liberdade, igualdade e fraternidade. Criando vínculo jurídico legal entre tais valores e o Estado nação.
O que o presidente está tentando fazer com esse legado? Avançamos na noção de autoridade racional legal de Max Weber; na ideia de destruição criativa de um gênio do fazer, Schumpeter; no ideário plural e democrático de Norberto Bobbio. Para que? Para que uns desassisados joguem o país na escuridão do obscurantismo? E, pior, semeiem o ódio e a intolerância entre concidadãos de nação fraterna? Negando até verba para realização de festival de jazz contra o fascismo?
Abro a janela. Olho o chão molhado de minha terra. O céu está cinzento, encoberto por improváveis chuvas de verão (lembro das Águas de março, de Jobim). A noite é parteira. A manhã (não a de amanhã, a de depois) pode trazer inesperada sensatez. E chance. Para concertarmos o aperto de mão. E consertarmos o caminho.
No desassossego noturno, socorro-me de Mario de Andrade: “Não tenho tempo para apoiar pessoas absurdas que, apesar da idade, não cresceram. Quero cercar-me de pessoas que sabem tocar os corações. Pessoas a quem os golpes da vida ensinaram a crescer com toques suaves na alma. Estou com pressa”. E certa leveza, encerro eu.
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