Às vésperas da publicação de “No caminho de Swann”, primeiro volume de “Em busca do tempo perdido”, Proust escreveu a seu amigo Robert de Flers que publicaria um livro pleno “de paixão e de meditação e de paisagens, onde pus todo o meu pensamento, todo meu coração e minha vida”.
O ano era 1913, e Proust ainda não era Proust. Desde algum tempo, quando estava prestes a fazer quarenta anos, se ausentara da vida social e vivia retirado. O mundo já ruidoso do início do século 20 perturbava-lhe o sossego. Então, Proust fez, a seu modo, um isolamento acústico: forrou seu quarto de cortiça e, para completar, contratou aquela que seria a governanta e confidente de sua última década de vida: Celeste Albaret. Esta era jovem e sensível, vinha do interior da França, e logo se adaptou a ser, como o patrão, uma criatura da noite. A relação entre os dois, tão bem conhecida de todos, tornou-se rica e complexa e passou a extrapolar a frieza de um simples contrato. Celeste encarnava para o escritor solitário alguns papéis do afeto: mãe, irmã, filha. Sua inteligência e sensibilidade cativaram Proust, aqueceram-lhe, por assim dizer, um coração já amadurecido pelos desapontamentos da vida.
Proust até então, se tomamos o ano de 1913 como um marco importante, era tido como um escritor mediano e um tanto falho. Além disso, pesava sobre ele a frivolidade de uma juventude esnobe vivida nos salões de Paris. Na juventude, publicara um livro de contos, “Os prazeres e os dias”, que mais tarde renegaria. Também escrevera um romance inacabado. Também pastichara autores famosos e por ele admirados: Flaubert, Michelet, Renan, Saint-Simon. Também publicara crônicas em alguns jornais. Ele próprio reconhecia que lhe faltava algo essencial: vontade. Nada lhe prenunciava o reconhecimento e a glória. Além disso, sufocava-lhe, desde os nove anos de idade, uma asma terrível. Acostumara-se à noite por causa dela, quando o pó também repousa. A saúde em geral não era nada boa. Seus amigos cansaram de ouvi-lo anunciar uma morte iminente, a ponto, claro, de ficar desacreditado.
Mas a morte retardou a chegada até o ano de 1922, quando faleceu de uma broncopneumonia que recusou tratar. A morte esperou que Proust conhecesse o sabor da glória nascente. Esse sabor inconfundível com que sonham todos os artistas. A morte nada pôde contra o nascimento de uma obra que passaria a ser reconhecida como o maior romance do século 20. Com o início, em 1914, da então chamada Grande Guerra, “Em busca do tempo perdido”, previsto para dois ou três volumes, alongou-se em sete intensos volumes.
A rigor, o fatiamento em volumes é algo até certo ponto secundário. Proust sonhava em publicar um impossível volume único, um maciço que sequer teria parágrafos. Mas a vida prática (no caso a vida editorial) se impôs, e a “Busca” só terminou de ser publicada em 1927, quando Proust já havia morrido. Ao morrer, revisava as provas de “A prisioneira”, o antepenúltimo volume de seu grande livro. Nessa sumaríssima cronologia, vale destacarmos o ano de 1919, quando, após o fim da guerra, Proust recebeu o prestigiado Prêmio Goncourt, o que chamou a atenção do público e da crítica e deu-lhe o reconhecimento com que sonhava. O livro premiado, segundo volume do seu romance, foi o hoje famoso “À sombra das raparigas em flor”, que, aliás, no original tem a curiosidade de trazer “flores”, no plural, uma sutil homenagem a Baudelaire, sendo de se observar que o correto, tanto em francês quanto em português, é a forma singular.
Mas a unanimidade atual em torno de Proust esconde, por assim dizer, uma recepção nada unânime no seu tempo, especialmente na própria França. As inovações de seu livro não tiveram uma receptividade uniforme. Em seu livro “Proust”, Ramon Fernandez relembra: “Proust, como Balzac inspirou muito prontamente fora da França uma espécie de culto: como Balzac, ele encontrou, em seu próprio país, ao mesmo tempo que uma viva admiração, recusas e resistências”. Nessa linha, Roger Schattuck assinala algumas dessas resistências e incompreensões críticas: “um livro obscuro”, “enfado e êxtase”, “uma prosa autoindulgente”, “um rastejar centipedaliano de frases intermináveis”… Em compensação, alguns dos maiores críticos iniciaram o lado brilhante e glorioso de sua fortuna crítica: um Jacques Rivière, um Walter Benjamin, um Ernst Curtius, um Edmund Wilson, que logo foram seguidos por outros, muitos outros tanto na França quanto ao redor do mundo.
“Em busca do tempo perdido” é uma obra genial, oceânica e metaliterária. Proust, costuma-se dizer, não tem leitores, tem devotos (assim como Henry James). Um dos maiores especialistas do autor, o professor Jean-Yves Tadié, nos fala que é uma obra “que responde a tudo”. Italo Calvino nos diz que é enciclopédica, e assim por diante. Para muitos, a grande inovação de Proust foi levar a poesia para o mundo do romance. O gênero, depois de Proust, jamais seria o mesmo. O mesmo Tadié nos demonstra, em “Proust, le dossier”, que é uma obra composta de todos os gêneros literários, sendo, ao mesmo tempo, um romance trágico, um romance de aventura, um romance erótico, um romance poético e um romance onírico.
Com efeito, na exuberante e multifacetada massa verbal da obra, encontramos de tudo, destacando-se, por exemplo e muito sumariamente: uma análise do ciúme, uma crítica aos costumes, uma celebração da arte e da estética, uma grande simpatia por tecnologias nascentes (automóvel, avião, telefone…), um riso irônico e iconoclasta, um memorialismo sensível, um desprezo pelo tempo cronológico, um encantamento e ao mesmo tempo um desprezo pelos códigos e liturgias da aristocracia, uma antropologia da aparência e, claro, uma reflexão filigranada sobre o tempo, a memória, os movimentos psicológicos, o inconsciente e a sexualidade humana. Para vários autores, Proust foi inequivocamente um precursor de Freud. Para o crítico Harold Bloom, ele é o “mais sábio dos contadores de histórias”. Para vários estudiosos, Proust também tem, e bem o merece, o status de pensador.
Para concluir (ainda que a contragosto!), realçamos que Proust é desses autores que significam, para quem os lê com profundidade e constância, todo um refinamento da sensibilidade. Nesse sentido, André Gide escreveu belamente que “Proust é alguém cujo olhar é infinitamente mais sutil e mais atento que o nosso e que nos empresta esse olhar durante todo o tempo em que o estamos lendo”. Por sua vez, a crítica e romancista britânica Pamela Hansford Johnson escreveu que “Não há romance no mundo que transforme mais profundamente os seus leitores do que ‘Em busca do tempo perdido’”.
Enfim, o enfermiço e o asmático, rico de dinheiro e de sensibilidade, que também era “o diabo”, um agradável diabo, para alguns amigos mais chegados, tornou-se o maior gigante literário dos tempos modernos. Está no panteão dos clássicos. A tartaruga ganhou da lebre, o patinho feio transformou-se num perfeito cisne. Nascido em 10 de julho de 1871, Proust faz 150 anos coberto de glória. Mais que da França, é um cidadão do mundo, um autor universal, um gênio de toda a humanidade.
Paulo Gustavo
Parabéns, caro Paulo G., por esta celebração do “mais sábio dos contadores de histórias”.
Obrigado, Sérgio Alves.
Cordial abraço
Você viu o que Rosa Freire d’Aguiar, nossa amiga, escreveu sobre Proust, onde, merecidamente, cita você? Vou transcrever aqui, com pedido de desculpas pelo longo — mas relevante — comentário. Viva!! Você é um talentoso e admirável analista de Proust.Rosa Freire d’Aguiar
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— Marcel Proust — século e meio de sentimento do mundo
Amanhã, 10 de julho, faz 150 anos que Marcel Proust nasceu. Foi num dia do verão de 1871, Paris ainda se refazia da insurreição da Comuna, a família estava instalada na rue La Fontaine, no então subúrbio (hoje bairro chique) de Auteuil.
A enxurrada de comemorações já vai alta, e prenuncia outra ainda maior, em novembro de 2022, quando se celebrará o centenário de morte de Marcel Proust.
O que já não se disse sobre ele? Entre proustianos, proustólogos, proustômanos, proustófilos, ele é fonte inesgotável de comentários, citações, devoções, dissecções. Amanhã haverá excursões aos santuários do proustismo — à praia normanda de Cabourg (retratada na Recherche como Balbec) e a Illiers (retratado como Combray), onde morava sua família paterna. Nas bancas parisienses, já circulam números especiais de revistas e suplementos literários dedicados a Proust. Para o segundo semestre se anunciam, na França, uns quinze novos títulos, até mesmo um que tratará de Proust pescador (sim, ele pescava trutas…). E não duvido que essas efemérides rendam, mundo afora, uma enfiada de livros cujos títulos já fico aqui imaginando: um “Proust à mesa”, outro com “As 100 melhores citações de Proust”, um mais ousado sobre “A vida dos gays proustianos”, quem sabe um “Comes e bebes nos salões da Recherche”.
Para ficar na nossa seara, li que Manuel Bandeira teve o atrevimento de confessar que “Duas vezes tentei ler o Proust e fracassei”. E José Lins do Rego escreveu que “desde Nietzsche que não se sentia tão perturbador inimigo do são espírito católico.” Zé Lins — ele mesmo rotulado de proustiano tropical, com seu “Menino de engenho” — foi além ao dizer que “a gente sente andar o [Diabo] por toda a sua obra como num estado de ubiquidade”, e que Proust era “esse homem para quem não existiu senso moral no seu infame mundo de perversões.”
Se muito Diabo ou pouco Deus, não importa. Importa o caráter monumental de “À la recherche du temps perdu”, que se estende por 3 mil páginas escritas durante catorze anos e publicadas em 7 volumes.
Algumas centenas destas páginas já me coube traduzir, no projeto de retradução da “Recherche”, a cargo do Mario Sergio Conti e ao qual me incorporei, a convite da Companhia das Letras. No momento, traduzo o quarto volume, “Sodoma e Gomorra”. Nunca o tinha lido, e estou maravilhada. Não é fácil desbastar aquela sintaxe tão proustiana, complexa, feita de frases espiraladas, desdobradas, encadeadas por ideias diversas e díspares. É mesmo uma tapeçaria, como dizem, em que as meadas-pensamentos se cruzam, se embrenham, ramificam. É mesmo um quebra-cabeça.
Mas o bom de traduzir Proust é que sempre tem alguém para lhe trazer uma novidade, um livro curioso, uma história para contar. Eu adoro saber de tudo. Admiro essa (quase) idolatria em torno deste homem de vida curta (morreu aos 51 anos) e saúde frágil, que oscilou entre a vida mundana e outra quase monástica, e imortalizou o que de melhor já se escreveu sobre os mecanismos da memória que abrem a alma para os caminhos, meandros e labirintos do tempo.
Não dá para “contar a história” da Recherche. Claro que há “enredo” e “peripécias”, mas o que importa mesmo é a recriação de um universo, é o sentimento do mundo.
Se não dá para contar o “enredo” da Recherche, dá para falar de quem sobre ela escreve: dois notáveis brasileiros.
O primeiro é o poeta e ensaísta pernambucano Paulo Gustavo. Ele, que já leu meia dúzia de vezes a Recherche e tem uma fornida Proustiana, publicou há uns anos o belíssimo ensaio “A tartaruga e a borboleta: um caminho para Proust”. E hoje, justamente, está lançando mais um, chamado “Acordar para Proust: uma breve iniciação a Em busca do Tempo Perdido”. Para vê-lo falar de Proust é só ir a @paulogustavo50.
Outro que escreveu um livraço sobre Proust é o jovem historiador e pesquisador Etienne Sauthier, suíço-brasileiro que vive em Paris. “Proust sous les tropiques” é um deleite. Nas 300 e tantas páginas a gente se enfronha em histórias sem fim, em pormenores de como foram, desde os anos 1910, a difusão, a recepção, a apropriação e as traduções de Proust no Brasil. O livro do Étienne é não só sobre Proust mas sobre nossos intelectuais daqueles anos, os que viviam em Paris, os que transplantavam para o Rio de Janeiro uma belle époque atrasada, os que dele se apropriavam, no Nordeste, os que em São Paulo, em plena Semana de Arte de 22, achavam Proust um decadente, quando não um “cafona”.
Hora dessas volto a Proust, pois ainda tenho muito chão nesse projeto alucinante de retradução. Por ora, à guisa de desejar Bon Anniversaire à Monsieur Marcel, vai essa foto em que ele é retratado por Nadar e responde de próprio punho ao questionário íntimo que então estava em moda. À pergunta n. 8: “Qual é sua ocupação preferida?”, ele respondeu: “Amar”.
Tinha então 16 anos. Já sabia de tudo.
Obrigado, Clóvis.
Ela enviou pra mim também.
Abraço do admirador
Esplêndido! Parabéns pelo belo artigo!!! 😉