O crítico inglês Terry Eagleton, de quem há pouco resenhei, aqui na revista “Será?”, o livro “O sentido da vida”, não me parece longe da verdade ao nos dizer nessa obra que, atualmente, o esporte é o verdadeiro “ópio do povo”. Nesse contexto, as Olimpíadas o que serão? De quatro em quatro anos, religiosamente, elas nos obrigam a peregrinar, remota ou presencialmente, na cidade eleita. Avivam nossa memória com hagiografias esplêndidas, criam uma “legenda áurea”.
Após uma hibernação regulamentar, as Olimpíadas voltam com seu estoque de reluzentes medalhas, pelas quais, atletas e torcedores, oferecem sua quota de sacrifício. É preciso ir cada vez mais longe. Aos espartanos atletas, roga-se uma entrega completa, quando não uma ascese que desloca o próprio eixo da alma. Mas é preciso chegar ao céu, digo, ao pódio, de onde se pode ver e escutar o aplauso universal. Ali todas as dores se dissipam, entra-se em êxtase; a existência deu uma daquelas voltas fundamentais. Por toda parte, lágrimas de alegria, com os músculos e os ossos transmutando numa matéria espiritualizada…
Naturalmente, por trás da legenda, cuja voz é multiplicada por uma mídia febril, existe o estresse, a pressão, os prazeres perdidos, a família esquecida, as ligações musculares estropiadas, a frustração dos patrocinadores, a saúde mental abalada, o desejo, à contracorrente, de sair de um túnel que leva a uma glória efêmera. Longe de mim, desvalorizar o esporte, mas apenas indicar que também ele, nutrido pela energia voraz do capitalismo, é motivo de sofrimento e de angústia. Ah, mas “O importante é competir”. No fundo, todo mundo sabe que essa frase é um pálido sopro. Os atletas são moldados para a vitória, não resta qualquer alegria para os derrotados, pelo contrário: desaparecem na sombra, engolem as lágrimas, voltam para treinadores autoritários e para fisioterapeutas de plantão.
Se vivo fosse, o que diria Thorstein Veblen (1857–1929), o economista e sociólogo americano que, em seu clássico ensaio “A teoria da classe ociosa”, trata o esporte como uma das “sobrevivências modernas da proeza”? Veblen dedica todo um capítulo à consideração da proeza guerreira como uma ancestral do esporte. A certa altura nos ensina:
Essas manifestações do temperamento predatório devem ser todas classificadas sob o título de “proezas”. São, em parte, simples expressões irrefletidas de uma atitude de ferocidade emulativa, em parte atividades deliberadamente iniciadas no intuito de obter renome de proeza. Esportes de toda espécie têm um mesmo caráter geral […] A base da inclinação para o esporte é uma constituição espiritual arcaica […].
Veblen vê nos esportes um exercício de destreza e ferocidade emulativa e “a característica astúcia da vida predatória”. É da vida arcaica do homem primitivo que o esporte tira grande parte de seu apelo, de sua atração. A competição moderna não é outra coisa senão uma ressurreição desses traços predatórios filogenéticos do ser humano. A ferocidade e a astúcia do temperamento predatório, esclarece Veblen, “[…] são expressões de um hábito mental mesquinhamente egoísta, ambas altamente úteis para o progresso individual de uma vida que vise ao bom êxito pela emulação. Possuem um alto valor estético e são ambas incentivadas pela cultura pecuniária”.
Enfim, sob o verniz civilizatório, como se costuma dizer, sente-se o pulsar e a energia de tremendas forças atávicas. O incentivo da “cultura pecuniária” move o resto: a indústria esportiva, a mídia, as carreiras dos atletas, o turismo e muito mais. Estar consciente dessas noções (nem sempre é o caso) ajudaria os atletas e seus torcedores a considerarem que há uma outra face da medalha, que, além do ouro, da prata e do bronze, há um esquecido chumbo que pesa sobre decisões que estão por trás de filmes e fotos que prometem uma eternidade invejável e paradisíaca. Como disse Proust, “Os verdadeiros paraísos são os paraísos perdidos”.
Amigo Paulo Gustavo,
Seu texto – impecável e bem fundamentado, como sempre – desta vez me deixou um travo de amargura. Amante dos esportes, como fui a vida toda, e ainda sou, embora hoje reduzido a caminhadas na praia e braçadas no mar, fiquei com uma impressão de má disposição de sua parte para com uma atividade que reputo das mais saudáveis, indispensável mesmo para esta nossa vida urbana e civilizada.
Vinte anos atrás, teorizei sobre o assunto nos artigos: “Esporte, para quê?” (JC 22.09.2000), “O combate inocente’ (JC 29.09.2000), “Descaminhos do esporte” (JC 27.09.2000) e, um pouco antes, “De futebol, violência e democracia” (DP 19.03.1986). Infelizmente, são de minha fase pré-digital, e não lhe posso remeter com facilidade. Mas para mim, com todas as deformações do comercialismo e das ambições desatadas, o esporte ainda é o melhor preventivo para a sedução das drogas, permanente ameaça à juventude do nosso século. Para ele encaminhei meus dois filhos e minha filha, como comigo fizeram meus pais. E posso dizer que deu certo.
Que venham pois olimpíadas e competições, abertas à confraternização dos povos, ao fim dos preconceitos, ao respeito às diversidades, à saúde física e mental dos participantes. De minha parte, como jogador provinciano de voleibol por mais de meio século, e da experiência de minha filha, nadadora olímpica, guardo as melhores lembranças.
Mestre Clemente,
Esse é o lado bom do esporte.
Grato pelas considerações.
O corpo precisa de movimento, e assim ginástica, exercícios, fisioterapia, algum esporte, dependendo do caso, ajudam a manter a saúde do corpo e da mente. Mas não sei se esse é caso dos esportes de ponta, de competição, que testam todo dia os limites do corpo humano. Aí o que vale é a glória. E nesses há histórias vergonhosas em que o que manda é só dinheiro. O que vocês acham de Messi deixar seu clube querido depois de 21 anos porque ajudou a causar a ruína do Barcelona? Ganhava por ano até 138 milhões de euros, enquanto o Barcelona ficava cada vez mais endividado, acumulando uma dívida de 1,2 bilhões de euros. Quem pode comprá-lo está financiado pela família real de Abu Dhabi e pela participação da Qatar Sports Investment. E o nosso futebol, em que estrelas ganham milhões, enquanto os clubes acumulam dívidas com o INSS? Para os românticos pensarem.
Sem dúvida, esta é uma das grandes deformações do velho capitalismo, difícil de confrontar. Infelizmente, ainda não encontramos algo melhor, para substituí-lo…
Obrigado, Helga.
É o lado sombrio…
Abraço