Adriano Batista Dias e Tarcisio Patricio de Araujo

Foram muitos milhares de anos de evolução do cérebro até que nossos quadrúpedes ancestrais conseguissem andar como bípedes, com equilíbrio e de forma ‘automática’, mantendo coordenação balanceada das ações exigidas pela nova dimensão do andar. Ou seja, o então homo sapiens executa a decisão de andar sem conscientemente controlar os esforços musculares necessários. Muitos séculos depois, o animal homo sapiens aprende individualmente – em tempo fantasticamente menor que o tomado para a passagem quadrúpede-bípede – a usar um veículo de duas rodas, a bicicleta, “automatizando” a requerida coordenação de esforços que garantem deslocamento com equilíbrio, conscientemente cumprindo a rota escolhida.

Ocorre que tal coordenação intrapessoal não tem correspondência quando se trata de relações interpessoais ou, de modo mais amplo, de relações sociais. Em particular, no complexo espaço urbano de médias e grandes cidades, e metrópoles. No plano meramente interpessoal, um exemplo ilustrativo de dificuldade de coordenação é o caso real (anos 1960, paradisíaca Ilha de Paquetá, Baía da Guanabara) de duas pessoas utilizando uma quadricicleta (duas selas paralelas e guidões coordenados). Ao se aproximarem de uma desembocadura em rua perpendicular àquela sendo percorrida, tendo sido esquecido um prévio entendimento sobre regras coordenadas de condução, e cada uma puxando o guidão para cada respectivo extremo (esquerda-direita), o resultado foi travamento do veículo e queda dos ciclistas. Agora imagine-se a coordenação, na macro dimensão social, dos agentes que trafegam no meio urbano (condutores de automóveis, caminhões, motocicletas, ônibus). Mas não só no tráfego per se. Diferentes comportamentos com respeito a normas e preferências, além de coordenação de políticas de mobilidade nas esferas estadual e municipal. Ademais, deve-se ter em conta a coordenação de diversas políticas públicas – que têm interseções.

Transportes públicos, na era pandêmica que vivemos, inegavelmente trazem risco mais alto de contaminação do que os individuais, constituídos pelo uso de bicicletas, motocicletas e automóveis. Nosso interesse é a bicicleta, por se tratar de veículo que não é fonte geradora do aquecedor dióxido de carbono, ou de qualquer outro tipo de agente poluidor, além de proporcionar saudável exercício físico e ser construtor de resistência imunológica. Para viagens de até 6 quilômetros de extensão são, em condições típicas, mais eficientes do que outros meios de transporte, mesmo coletivos. Ademais, às vantagens já mencionadas – na contraposição entre bicicleta e outros meios de locomoção, em particular transporte público – adicione-se a influência da Covid-19 como fator circunstancial incentivador de adesão ao uso de bicicleta, dada a redução do risco de contágio, associada ao caráter individual do veículo. Houvesse equipamento urbano mais favorável ao ciclismo, certamente a provável expansão do uso de bicicletas – em decorrência da pandemia – estaria sendo maior. Deve-se, portanto, incentivar o ciclismo, sendo um êxito o frequente uso da bicicleta para lazer. Todavia, a descoordenação de políticas públicas concernentes ao usufruto partilhado do espaço urbano termina por tornar pouco utilizadas as ciclovias e ciclofaixas, impedindo adequada e plena utilização de bicicletas para viagens casa-trabalho-casa.

Um primeiro fator de desincentivo vem da falta de obrigação legal dos estabelecimentos produtivos de manterem chuveiros próprios para os que chegam de bicicleta. No verão no Sul, também em boa parte da primavera e outono no Sudeste e Centro-Oeste, e na maior parte do ano no Norte e Nordeste, a falta de chuveiros no trabalho desincentiva fortemente o uso de bicicletas para viagens casa-trabalho. É muito confortável um bom banho ao término de uma boa andada de bicicleta no domingo, ao se retornar à residência. Imagine-se a situação de um trabalhador que termine sua viagem de bicicleta no ambiente de trabalho e tenha que permanecer durante a inteira jornada de trabalho sem direito ao conforto de um banho.

Outro fator de desincentivo é a impossibilidade de direito ao vale transporte para o usuário de bicicleta. Se o cidadão já recebe o vale e usa o transporte público, perde o vale se optar por bicicleta. Imagine-se a implicação disso em uma época de pandemia, diante da essencialidade de se manter baixo o risco de contaminação, para salvar vidas e salvar pessoas de desastrosas sequelas infligidas aos que são contaminados e escapam. A bicicleta deve ter o uso ainda mais incentivado e não o transporte público, poluidor e que contribui para o desastre do Aquecimento Global. É hora de se pensar na possibilidade de o vale transporte ser convertido em componente do salário, evitando-se penalização do racional uso da bicicleta. A propósito, registre-se que em Tóquio, Japão – em ambiente urbano mais bem equipado e mais racionalmente organizado do que o nosso – há empresas que dão um surplus ao funcionário que usa bicicleta para ir ao trabalho.

Como se trata de questão na esfera administrativa municipal, dois aspectos devem ser observados: a) avaliação da viabilidade de implementação de um “prêmio” ao trabalhador usuário de bicicleta; b) Articulação entre Câmara Municipal, Prefeitura e representação popular, para instituição do devido aparato legal. Certamente, tal projeto levaria à expansão do uso da bicicleta e, para isso, os correspondentes equipamentos urbanos (principalmente ciclovias e ciclofaixas) mereceriam o devido planejamento, sob pena se gerar mais uma faceta do caos urbano – caso tal adequação não seja realizada.

Não menos importante é viabilizar adequado usufruto de ciclovias e ciclofaixas, provendo-as de satisfatório sombreamento. Em contraposição a deslocamento urbano por meio de automóveis e veículos coletivos, em que os cidadãos podem contar com o poluidor-aquecedor ar-condicionado, aos usuários de bicicletas resta contar com o refresco de sombras que os abriguem de inclemente radiação solar tropical.

Os desincentivos ao uso de bicicleta como meio de transporte, principalmente para deslocamento domicílio-trabalho-domicílio – aqui caracterizados – são devidos, reitere-se, a descoordenação de políticas públicas, o que resulta em danos à saúde coletiva. Em dimensão mais ampla, consequências de fragilidades de políticas públicas são mais sérias, se associam ao perfil da distribuição de renda real e, ulteriormente, a diferentes níveis de bem-estar da população.

Por outro lado, cada quilômetro percorrido com uso de bicicleta, em substituição a transporte motorizado, traz contribuição a um mundo melhor, menos poluído, menos castigado por implacável mudança climática. Cada quilômetro é individualmente desprezível, como cada molécula de água no mar. Mas são as moléculas individualmente desprezíveis que, no seu conjunto, formam o mar, que cobre ¾ do planeta. Por e para todos, articulem-se políticas públicas, de modo a se incentivar, de forma adequada, o ciclismo como meio de transport