Ou “De como as coisas do coração se sobrepõem à matéria e aos sentidos”
Fernando Ribeiro de Gusmão (*)
— Juro pelo Santo Cristo e prometo a vós, senhor meu pai: caso com o primeiro que me trouxer uma arribaçã verde!
No dia em que Lázaro Pedro dos Santos, Barão de Floresta Nova, ouvira pedido tão alucinado por parte da filha, acordara com o coração apertado.
Na noite anterior, durante a ceia, a baronesa, sua mulher, havia lembrado que era hora de mandar a filha mais nova, Isabelle, para o Convento, pois havia passado a hora dela casar. Mais uma vez, a tal proposta que ele execrava.
Fora dormir com um gosto ruim roendo por dentro e, pela manhã, ao abrir os olhos, mandara chamar a filha e pedira, novamente, que considerasse a possibilidade de aceitar um dos seus pretendentes.
Mas,
—Arribaçã verde? Verde?!!!
—Sim! Da cor dos meus olhos.
O Barão não se alegrou com a resposta. Sabia muito bem que arribaçãs verdes não existem neste mundo. Avoantes cinzas, ou cinza azuladas, vá lá! Mas, verdes? Jamais.
Isabelle era um excelente partido. Quem a conhecia admirava seu espírito, sua bondade e sua inteligência. Mais que tudo, chamavam a atenção os profundos olhos ferrãs da moça, que iluminavam um rosto moreno, arrebatador. Isabelle talvez fosse a maior romântica já nascida neste mundo. A jovem, pensava seu pai, entre todas suas qualidades, tinha apenas, no seu entender, um defeito: queria ser freira carmelita.
Perante a imposição enunciada pela filha querida, não vendo o que fazer, mas tendo ainda alguma esperança, Lázaro mandou proclamar em todo sertão nordestino que o primeiro a trazer para a filha uma arribaçã verde, da cor dos olhos de Isabelle, com ela se casaria. Aproveitou para dizer que havia aumentado o dote, de trinta para cinquenta e uma cabras leiteiras. Estavam em setembro e ele deu, como data limite do seu repto, por sugestão e cominação da baronesa, que sonhava ver a filha religiosa, o 31 do dezembro próximo.
Poucos candidatos saíram em busca de uma arribaçã esmeraldina, mesmo na esperança de casar com mulher tão bela e, além do mais, se tornar genro e herdeiro do Barão! Rapidamente, restaram apenas três interessados persistindo na busca. Um era um comerciante muito rico, Chico do Caroá, setentão, mulherengo, ladrão, talvez assassino, considerado por todos que o conheciam como exemplo de flor que não se cheira.
Logo que soube do desafio, Chico procurou o famoso taxidermista francês, Jean Luc de Lisieux, na Rua dos Judeus, em Recife, e encomendou ao cientista a arribaçã verde mais linda do mundo, prometendo pagar o necessário para que o pássaro empalhado fosse mais bonito, deslumbrante e tão altivo quanto qualquer ave vivente na natureza.
O taxidermista, discípulo, décadas antes, do próprio Charles Darwin nessa difícil arte do empalhamento, usou de toda sua ciência para atender ao pedido. Começou mergulhando uma arribaçã cinza —viva— em um líquido verde, à base de arsênico, até que o pássaro matizou a cor desejada. Em seguida, procedeu meticulosamente, trabalhando com soberba competência, para atender condignamente à encomenda. Usando seus segredos até o limite do possível, acrescidos de ouro, prata e pedras preciosas, costurou uma arribaçã que ultrapassava em beleza, intensidade e altanaria todo e qualquer pássaro da Terra. Quando Chico do Caroá, ao final do prazo acordado, voltou ao exímio profissional, ficou deslumbrado com a genialidade da criação. Nunca tinha visto coi retornaria muitas e muitas vezes devidamente multiplicado. Correu de volta a Floresta Nova para dar à moça a arribaçã verde prometida e com ela se casar. O Barão se alegrou, deslumbrado ante a visão da espetacular ave quintaplégica e disse à Isabelle:
“Cumpra sua promessa! Você tem a arribaçã verde que tanto queria. Vamos preparar o casório! Sua filha, no entanto, sentindo-se enganada e despedaçada, como uma rosa pisada ao chão, machucou-se em lágrimas e falou: —Meu pai, você não vê que é apenas o cadáver de uma arribaçã? Olhe meu pai, é um ser morto, sem a força que a vida carrega. Não é mais um lugar de passagem; falta-lhe o essencial, o movimento, que esse manequim enfeitado não tem. E fugiu de volta para seu quarto.
O segundo pretendente era um guapo tenente da Força Pública de São Paulo, Hermes Ribeiro, nascido em Areia, no Brejo, irmão da minha bisavó Antônia Leopoldina, que estando em férias, em Campina Grande, ficara curioso ao saber do desafio e procurara conhecer Isabelle. O tenente Hermes dava pouco valor a dotes e cabras, mas apaixonou-se perdidamente ao mergulhar na verdura dos olhos tão maduros de Isabelle. Hermes era amigo de Albert Eckhout, artista famoso, trazido por Nassau dos Países Baixos para a Land van oudekrijgers, conhecido pelos quadros de faunas, flores e fontes. Contou para ele seu desejo, enternecendo o velho pintor. Eckhout ficou motivado pelo jovem enamorado, mas, além disso, sentiu-se desafiado em sua natureza criativa. Sabia que as cores somente mostravam toda sua beleza por inteiro quando dialogavam umas com as outras. Pintar uma arribaçã monotônica e monocromática, que atendesse ao desejo de uma bela e exigente mulher, demandava um talento maior, que ele achava dele possuidor. Pôs mãos à obra. O flamengo, além de um virtuose pintor, fora, quando jovem na Holanda, discípulo de Lupo da Bergamo, mestre da magia amatória e erótica, na linha da relação ancestral de Circe com Medea, juntando a sexualidade à tragédia feminina do viver passional. Nessa condição começou preparando um pigmento verde muito especial que, quando pronto, enfeitiçou dizendo: Verde sagrado, que pela minha própria mão foi preparado, o meu sangue e a minha alma estão presos no seu interior. Toda a pessoa que o vislumbrar há de ficar por mim encantado: “ignoratus tuunz vos assignaturum meo”. Daí seguiu, operando com competência a paleta, as espátulas e os pinceis. No dia aprazado, o tenente Hermes foi ao ateliê de Eckhout apanhar sua encomenda, curioso para ver como ficara a pintura.
—Bom dia, mestre Eckhout. Pode, por favor, me mostrar a tela?
O pintor apontou sobre a mesa um pacote de um quadro já emoldurado, firmemente envolto em linho e devidamente atado com sisal. — Vergeven! Infelizmente isso não vai ser possível. Para que o quadro cumpra sua missão e lhe ajude a ganhar a alma da moça, faz-se necessário que seja ela a primeira a vê-lo, depois que o dei por terminado. Para o Tenente, mais importante que ter a primazia de ver a arribaçã verde era casar com a donzela. Agradeceu ao velho holandês, pôs o pacote debaixo do braço e partiu de volta para Floresta Nova. Apresentou-se ao Barão dizendo ter atendido ao desejo de Isabelle e pedindo que chamasse a filha para receber o troféu. Lázaro Pedro quis ver a arribaçã, mas o militar desconversou e disse fazer questão de que fosse a donzela, que lhe fora prometida, quem abrisse o pacote da arribaçã verde. Para o Barão, mais importante que ver a ave esmeralda era casar a filha evitando sua ida para o Convento. Mandou o aio chamar Isabelle enquanto servia ao Tenente um divino licor de Jabuticaba, que mandara buscar em Bananeiras, reservado para ocasiões tão especiais quanto aquela.
Isabelle, estava em seu quarto, às voltas com o fuso e a roca. Atendeu, acompanhando o preceptor à sala de visitas do castelo, ao encontro com o pai. Mas, quando ainda para lá caminhava, sentiu a presença de sua padroeira, Santa Catarina, lhe prevenindo de um sortilégio que para ela estava sendo dirigido. Acautelada, chegou à sala e viu o Tenente Hermes que lhe disse do júbilo de poder cumprimentá-la e de lhe presentear com uma arribaçã verde. Foi aí que Isabelle sentiu o perigo. Logo recitou —em alto e bom som— a oração de quebra de encantamentos, aprendida de uma cigana, sua amiga, habitante de uma caverna no sopé da Borborema: “Em nome do Sangue de Cristo, eu repreendo, quebro e desligo a mim de toda e qualquer maldição, feitiço vexame, sedução, magia negra, azares, poderes psíquicos, fascínio, bruxaria ou feitiçaria, que tenha sido colocado sobre mim e sobre minha linha de família, por qualquer pessoa ou por qualquer fonte de ocultismo ou fonte psíquica e ordeno a todos os espíritos relacionados a eles que nos deixem agora”. Foi o bastante: o pacote com o quadro entrou em combustão espontânea, emitindo um chiado gutural e exalando forte odor de enxofre. O aio desmaiou. O Barão sentou-se embasbacado, mudo, e o Tenente pulou a janela e fugiu correndo de volta para São Paulo. Isabelle retornou para seu quarto e continuou às voltas com o fuso e a roda de tear.
O terceiro pretendente era um cearense baixinho, da cabeça grande, por nome Raimundo Nonato, que morava ali perto, em Fagundes, aos pés da Pedra de Santo Antonio. Ele havia conhecido e ficado enfeitiçado pela beleza de Isabelle em uma ocasião, já há algum tempo, em que, associado ao meu tio Lucas, tangia uma tropa de burros entre Patos e Campina Grande e havia recebido guarida no Castelo do Barão. No primeiro dia de dezembro, uma noite de verão, Isabelle recebeu uma carta que lhe fora endereçada por esse seu pretendente, com apenas um poema: “Tão lindos, os verdes olhos da minha amada. Seus olhos e seu olhar me mostram o além-mar. Me fazem descobrir segredos na madrugada. Promessas do querer, certezas do viver. Águas que me banham, vinho do meu beber. O olhar da minha amada diz mais que o saber dos que dizem entender e dos que já sabem não dizer. Profundos, rasgos no céu, trazem crenças ao incréu, outro nome da alegria, iluminam o meio-dia. Resumo do tudo e do nada, lindos como uma elegia, os verdes olhos de minha amada. ” Isabelle ficou encantada com o poema, principalmente com a alusão aos seus olhos verdes e à sua alma. Sentia-se mulher, desejada. Três dias depois, mais uma carta/poema do mesmo missivista canarinho: “Eu te amo porque te amo. Não precisas ser amante, e nem sempre sabes sê-lo. Eu te amo porque te amo. Amor é estado de graça e com amor não se paga. Amor é dado de graça, é semeado no vento, na cachoeira, no eclipse. Amor foge a dicionários e a regulamentos vários. Eu te amo porque não amo bastante ou de mais a mim. Porque amor não se troca, não se conjuga nem se ama. Porque amor é amor a nada, feliz e forte em si mesmo. Amor é primo da morte, e da morte vencedor, por mais que o matem (e matam) a cada instante de amor. ” Os versos a enfeitiçaram de vez. Sua vida passava a ter sentido. Era o Amor marcando presença. Finalmente, no dia oito, na festa de Nossa Senhora da Conceição, ou de Oxum, no palavreado nagô, rainha das águas e madrinha da pureza, uma terceira poesia: “Desnuda és tão simples como uma das tuas mãos. Lisa, terrestre, mínima, redonda, transparente, tens linhas de luas, caminhos de maçãs, desnuda és delgada como o trigo desnudo. Desnuda és azul como a noite em Cuba, tens trepadeiras e estrelas nos cabelos. Desnuda és enorme e amarela como o verão numa igreja de ouropel. ” Na noite de Natal, Raimundo Nonato disse a Isabelle que queria com ela se casar. Àquela altura perdidamente apaixonada e totalmente abandonada do desejo de ser freira, a moça respondeu com um sim, mas que havia o problema de sua jura de só se casar com quem lhe trouxesse uma arribaçã verde. — Não é problema, retrucou Raimundo. — O que mais existe por esse sertão são arribaçãs verdes. Vou buscar uma para você poder cumprir com sua promessa. Na véspera de Ano, o cearense chegou de volta com uma gaiola onde repousava, tranquilamente, uma linda e comum arribaçã cinza azulada. Mostrou ao Barão, que riu e chamou a filha: —Este aqui afirma ter encontrado essa arribaçã verde! Para sua surpresa, Lázaro Pedro dos Santos ouviu a filha contrapor feliz e alegremente: —Sim, meu pai, ela é verde, ela é a arribaçã mais linda que eu já vi e ela é muito, muito verde. Garanto-lhe que ela é verde. É você quem não vê! Ela é de um verde mavioso, e eu estou feliz porque vou casar com quem a trouxe para mim.
Tempos depois, precisando da expertise de Sto. Antonio e sabedor dos detalhes da história do casamento do Amarelinho com a filha do Barão, fiz uma romaria à Pedra, em Fagundes. Encontrei, por acaso, o cearense pelas sete da manhã, tomando cerveja quente com goiabada no Restaurante Santo Antonio da Pedra. Aproveitei para, com jeito, censurá-lo: —Raimundo Nonato, você ganhou o amor de Isabelle com poesias, por sinal muito boas, de Fernando Gusmão, Drummond e Neruda! Como se fossem suas! Isso não lhe traz nenhum pejo? —Amigo, faço minhas as palavras de Skármeta, na resposta do Carteiro ao Poeta: —“A poesia não é de quem escreve, mas de quem dela faz bom uso”.
Pus a viola no saco e voltei para Campina Grande.
FIM
(*) Fernando Ribeiro de Gusmão
Engenheiro, membro da Associação Brasileira de Engenheiros Escritores. Publicou em 2015 em Portugal, pela Chiado Editora, “A Empresa Privada no Divã”. Na Amazon estão disponíveis de sua autoria “Contos da Borborema e Arredores” e “A Vista Encantada”, este último escrito em parceria com Maria Elizabeth Freire. Faz parte da Oficina de Criação Literária Clarice Lispector, de Recife.
Adorei. História verídica?
Excelente conto. A Revista Será está de parabéns pelo novo colaborador. Espero encontrar Fernando Gusmão sempre por aqui.