Num conciso ensaio de 1988, intitulado “A procura do ideal”, Isaiah Berlin nos coloca algumas questões tão abrangentes quanto cruciais. Segundo ele, dois pontos, num horizonte futuro da História, continuarão a chamar a atenção para o século 20: o intenso desenvolvimento tecnológico e o que chama de “[…] vendaval de ideias que mexeu com a vida da humanidade inteira; a Revolução Russa e seus desdobramentos — tiranias totalitárias tanto de direita quanto de esquerda e as explosões de nacionalismo, racismo e, em alguns lugares, de intolerância religiosa […]”.
Nesse breve ensaio, Berlin nos faz ver que, por trás das várias perspectivas morais e políticas do início do século 20, existia “uma crença de que havia soluções para todos os problemas”, bastando uma certa dose de esforços altruístas para que conseguisse realizá-las. Mas o filósofo se deu conta de que tais visões “tinham em comum o ideal platônico”, a busca de um mundo perfeito. Sim, isso seria possível, e as idas e vindas da História, como queriam Hegel e Marx, terminariam por apontar o triunfo da razão. De fato, para muitos pensadores, progresso e História se dariam as mãos rumo a um possível paraíso terrestre.
Finalmente, o ensaísta chega ao núcleo duro do seu texto, a saber: que toda e qualquer “solução final”, ou panaceia política, na qual a utopia, tendo desempenhado um papel estimulante, termina por exigir, com vistas a um mundo harmonioso e justo, uma cota de sofrimento humano colossal — o que se verificou ao longo do século 20. Assim, ele nos alerta: “Para fazer tamanha omelete, não há limites para o número de ovos a serem quebrados – essa era a fé de Lênin, Trótski, Mao e, até onde sei, de Pol Pot […] Câmaras de gás, gulags, genocídios é o preço que os homens têm que pagar pelo bem-estar das futuras gerações”. Arrematando com ironia: “Se você deseja seriamente salvar a humanidade, deve endurecer seu coração, não importa o custo”.
À esquerda e à direita, os ovos continuam a ser quebrados para as fantásticas omeletes que virão, acalentados por uma visão que, no mínimo, faz vista grossa ao mal imediato e cotidiano. Nas palavras do filósofo: “Os ovos são quebrados, e o hábito de os quebrar se fortalece, mas a omelete continua invisível”.
No Brasil de hoje, o bolsonarismo (uma salada ideológica parafascista) também convoca seus fiéis a quebrarem os ovos. Neste passo, suponhamos que os mais sérios desses fiéis, muitos dos quais inequivocadamente cristãos, sonham com um mundo de alguma forma mais condizente com determinados valores supostamente justos e conservadores, a exemplo de um cristianismo fundamentalista; de um propósito salvífico; de uma luta anticorrupção e antimodernidade. Se assim tão nobremente se guiam, que fazem eles ante um líder reconhecidamente violento, rancoroso e de escancarada imoralidade? Não veem que a violência é uma vertente natural do grupo que abraçaram? O que fazem os “terrivelmente evangélicos” diante do que o simples bom senso mostra ser incompatível com o cristianismo e com os ideais conservadores? O que diz a consciência de um ministro-pastor ante a crueldade e a falta de empatia do presidente da República? Como se justificam a si mesmos tais pastores perante os fiéis de sua igreja? Como mitigar o léxico escatológico do presidente? A troco de que aceitar a obscenidade de gestos sem decoro?
Uma resposta plausível seria na linha de Berlin: estão todos quebrando ovos e, suponhamos, por um objetivo transcendental que os justifica: a deliciosa omelete de uma sociedade ultraconservadora e livre das impurezas dos “infiéis”. À medida que se estiola a tolerância e as instituições são deliberadamente rachadas, aumenta a escalada da violência que nasce dos porões e se incrusta, em todo o País, nas forças de repressão. O cúmulo dessa excitação teve um signo claro e parodístico num dos slogans do último e vergonhoso 7 de setembro: “Armai-vos uns aos outros”. A propósito, em mais um aspecto patológico da sociedade brasileira, cumpre enfatizar que a própria mídia, senhora das palavras, não vem chamando as coisas pelo nome. O exemplo mais emblemático é o uso do termo “direita” para se referir ao que é de fato extrema direita, pois os brasileiros estão vivendo, ao fim e ao cabo, um governo que propicia que, aqui e ali, emerjam, desassombradas, assombrações nazifascistas…
Ao lado de sua típica capacidade de si ensimesmarem, os fanáticos e extremistas nada veem, ou não querem ver, a não ser a sua sonhada omelete (Ao que parece, o poder de que já gozam é um bom naco da omelete futura). Com certeza, essa iguaria há de compensar inúmeros erros e o morticínio de milhares de vidas humanas. A questão é: como abordar um fanático e deter a sua sanha equivocada e arrogante? Se esse fanático estiver no poder, tanto pior. Isso é tanto mais complexo quanto se sabe que, não raro, fanáticos trocam apenas de extremismo. Enquanto, não se responder na prática a essa simples questão, os ovos continuarão a ser quebrados à direita e à esquerda. Quem sabe um dia os extremistas entenderão que a procura do ideal não pode significar a própria perda ou negação do ideal. Chegará esse dia? Talvez seja interessante que saibam que a compaixão e a empatia de que abriram mão é, para muitos filósofos e pensadores, o próprio cerne onde radica a moralidade humana; fundamento, por sua vez, da própria vida em sociedade.
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