Carta a um amigo bolsonarista.

Conversation by Arnold Lakhovsky.

 

Caro amigo,

Já disse um pensador que as palavras têm o poder de elevar o espírito do outro ao céu. Talvez seja este o caso entre pessoas apaixonadas; e que também podem levar o outro ao inferno, quando estas carregam ódio e desprezo ao outro. Este certamente é o caso das palavras lançadas entre as trincheiras da polarização político-ideológica que invadiu o século XXI.  Aqui no Brasil, as trincheiras foram demarcadas pelo o lulismo x bolsonarismo.

Vou um pouco além e digo que há uma terceira via neste fluxo de palavras, que é quando estas, carregadas de conhecimento em meio às incertezas, são dirigidas ao outro, não para  convencê-lo a mudar, mas para oferecer-se como uma ponte por onde deve trafegar o diálogo que, diferente do conflito,  deixa passar o conhecimento nas duas direções, enriquecendo as partes envolvidas. 

É com este espírito que lhe escrevo. 

Um pouco da minha história

Minha relação com o estudo e a compreensão dos fenômenos da política, e seus efeitos na sociedade e no sujeito, tem sua origem ainda durante a transição democrática, na década de 80 do século passado, quando investi quatro anos de trabalhos de pesquisa social no mestrado em ciência política, investigando o processo de formação do Sistema Partidário no Brasil.

De lá para cá venho atuando num dinâmico entrelaçamento com os saberes da ciência política, da estratégia, da psicanálise, da sociologia e da filosofia. Tudo isto movido por uma curiosidade intelectual voltada à compreensão destas três instâncias que forjam nossa existência: a política, a sociedade e o sujeito, esta última constituída por desejos, frustrações diante da vida. Em mim reside uma esperança de que o conhecimento de qualidade, produzido e disseminado, possa, de alguma forma, em maior ou menor intensidade, ter efeito transformador sobre como as pessoas atuam em sociedade, quer seja como políticos, eleitores ou analistas – no âmbito do público ou do privado.

Tentando fugir das perigosas abstrações intelectuais, criamos, com outros amigos que dividem as mesmas esperanças comigo, a Revista Será?, um projeto editorial online que vem há nove anos, semanalmente, produzindo e publicando conteúdo sobre os temas aqui já referidos.

A origem da polarização radical 

Há em toda sociedade, latentes, vetores de percepção da realidade social antagônicos e múltiplos. Isto, desde tempos imemoriais. Esses vetores são expressões das diversas diferenças, desejos, frustrações que forjam os indivíduos, organizando-os em grupos ou segmentos sociais. No século XX, duas guerras, com milhares de mortos, foram necessárias para que a humanidade fosse resgatar e aperfeiçoar a democracia como um valor universal, onde os conflitos devem ser resolvidos em ambiente civilizado, sob o império da Lei, e não mais recorrendo à guerra; onde o respeito à diversidade humana, antes uma fragilidade, agora estruturada pela tolerância e a lei, é a principal pedra angular das sociedades democráticas.

No Brasil, com a operação Lava Jato, descortinaram-se de forma nua e crua os seculares mecanismos de corrupção de parte expressiva das elites políticas e econômicas, subjacentes ao funcionamento do Estado e da sociedade. O PT deu o azar de ser o partido no poder e, apesar de ter transformado a corrupção em uma política de Estado, certamente qualquer outro partido seria alcançado pela Lava Jato. Milhares foram às ruas, resultando no impeachment de Dilma. Foi neste momento que a nação sofreu uma clivagem, ou rachadura, separando cidadãos, familiares, destruindo amizades. O anti-lulismo foi o útero que gestou o bolsonarismo. 

Bolsonaro, inegavelmente um líder, como todo populista, com traços carismáticos, assim como Lula, consegue conquistar o poder. Sem nenhuma evidência de que estava preparado para governar um país como o nosso, pois seus vinte e oitos anos como parlamentar assim o denunciavam, consegue, navegando nas tormentosas águas do ódio disseminado nas redes sociais, chegar lá – evidentemente, que a facada que o atingiu galvanizou ainda mais a orientação do voto a seu favor.

Enquanto isso, Lula é preso, após julgado em várias instâncias por corrupção e outros crimes, cumpre parcialmente a pena, e volta, com a ajuda de decisões no mínimo questionáveis do STF, à arena política. 

E a rachadura da nação, qual uma ferida mal cicatrizada, volta a sangrar, ideologizando todos os fenômenos que nos afetam, incluindo a terrível pandemia que ceifou a vida de mais de 600.000 brasileiros. 

Aliás, só para explicar ao leitor, foi devido à minha acusação contra Bolsonaro por crime de negacionismo, após ter perdido um amigo que faleceu de COVID por ter recusado a vacina, que nossas diferentes visões vieram à tona, em grupo de WhatsApp da família, com você, como eleitor dele, fazendo enfática defesa de Bolsonaro. Foi esta a principal motivação para lhe escrever, com o propósito, como disse no começo, de construirmos os alicerces de uma possível ponte de diálogo entre nós dois.

O cidadão esmagado pelo peso da polarização política.

É sabido que o sujeito, diante de graves ameaças no seu ambiente, tem uma tendência a decidir seguindo a lei do menor esforço. Sem muita vontade, tempo ou habilidade para construir cenários complexos, onde as diversas divisões sejam vistas de cima, e neles, após reflexão e ponderação, decidir agir, opta pelo impulso. O problema é que estamos experimentando um processo novo, que veio para ficar: é a desinformação.  Fenômeno utilizado à exaustão pelas forças do mercado e da política, no Brasil e no mundo. 

Sobre a influência das mídias digitais na nossa vida, cito o filosofo sul-coreano Byung-Chul Han:

“Arrastamo-nos por trás da mídia digital, que, aquém da decisão consciente, transforma decisivamente nosso comportamento, nossa percepção, nossa sensação, nosso pensamento, nossa vida em sociedade. Embriagamo-nos hoje em dia de mídia digital, sem que possamos avaliar inteiramente as consequências dessa embriaguez. Essa cegueira e a estupidez simultânea a ela constituem a crise atual. ( Byung-Chul Han in O Enxame)

Vivemos um tempo em que a realidade não é mais percebida pela testagem dos fatos, e sim pela forma como nossos afetos (impulsos) são manipulados,  capturando-nos em bolhas ou “nichos de realidade”, mantendo-nos aprisionados pelas cercas do ódio, do medo e do preconceito. Cercas estas diariamente fortalecidas pelas notícias falsas, enquanto nós, como alvos fáceis, desconhecemos os reais propósitos de quem posta a informação em nossa timeline ou repassa pelo WhatsApp.

A autonomia do sujeito e a evitação da radicalização ideológica

A eleição presidencial de 2022 é um terreno onde a radicalização entre Lula e Bolsonaro será acirrada, levando ao limite os mecanismos de manipulação nas mídias sociais, instigando o ódio mútuo entre cidadãos que, infelizmente, agindo por impulso, irão debater-se nas ondas das certezas cegas, movidas pela paixão e não pela razão.

Em minha pesquisa, após anos tentando identificar as bases ideológicas dos partidos políticos, cheguei à conclusão de que há um natural conflito de interesses que se sobrepõe às diferenças ideológicas entre os partidos: é o conflito entre a classe política e a sociedade civil. No Brasil, após o desmonte da Lava Jato, nota-se, cada vez mais, e de forma surpreendente, partidos de todo espectro ideológico votando a favor de barreiras protetoras da impunidade pelos crimes de corrupção. O exemplo mais recente foi o da Lei de Improbidade Administrativa.

O que fazer? O primeiro passo é sair das trincheiras, lulistas ou bolsonaristas, questionando se o que nós percebemos é fato ou estamos sendo alvo de manipulações. Há hoje uma parcela significativa da população que não apoia nem um nem outro. Estes anseiam por um candidato com perfil conciliador, que tenha competência para retomar o futuro da nação, pois, se o PT causou enorme prejuízo descontruindo o Estado com relações promíscuas com o grande capital, o governo Bolsonaro  mostra-se incompetente e aturdido com os desafios de governar um país com as dimensões e complexidades do nosso, com ferramentas ideológicas de extrema direita e ações antidemocráticas, sobrevivendo aos ataques e conflitos gerados a cada dia.

Haverá uma tão desejada terceira via? Não sei, mas certamente lhe afirmo que esta, emergindo e quebrando a polarização radical, poderá ser um passo importante para pacificar a nação.

Bem, amigo, não tenho a pretensão de fazer você mudar suas convicções, já disse isto no começo, mas se estas reflexões o ajudarem a entender um pouco mais o contexto geral da política, com suas sutilezas, me darei por satisfeito.

P.S Um forte abraço, e até o próximo churrasco em família. Levarei meu violão, com a condição de você me passar aquela receita maravilhosa do molho de churrasco, que você herdou de seus pais e guarda a sete chaves.