Man drinking guinness by Robert Deveraux.

 

É pena que as pessoas se deem pouco tempo para coisas importantes e o percam com frivolidades. Quando ele, na verdade, poderia ser bem aproveitado se dedicado ao conhecimento, à experimentação, e não ao acúmulo de quinquilharias. Digo isso porque fiz há meses uma linda viagem à nublada Escócia. Assim, depois do kipper do café da manhã – arenque defumado grelhado –, saí da estação de Edinburgh para Glasgow a bordo de um trem preguiçoso, mas animado. 

Nessa hora de trajeto, as montanhas nevadas compunham o horizonte. Perto dos trilhos, o pasto farto deleitava um gado onde as reses pareciam de exposição. Nas vacas, não se fazia distinção entre patas, cabeça e úberes – para simplificar. Aquele rebanho facilitava a vida do escritor. Pois cada animal era um enorme e pesado bloco que só mastigava e mal se mexia. Na vileza da mente humana, eu imaginava costelas em fogo brando.

De Glasgow, outro trem até Ayr, e, então, o melhor. Isso porque subi num ônibus para Cairnryan – estação onde se toma o ferry para Belfast. Ora, sabendo que dependia da meteorologia para cruzar o Mar da Irlanda, perscrutei os detalhes. E eles eram tantos que levaria horas para registrá-los. Mas vale anotar que as cidades pequenas que cortamos pelo meio, a poucos metros dos rochedos do mar, eram encantadoras. Que vontade de parar em Ballantine e observar a natureza em suspensão. Mas seguimos. 

A partir desse ponto, assomou uma imensa ilha que boiava no horizonte como se fosse um seio gigantesco. O contorno era único. Posso dizer, sem exagero, que rodamos mais de hora, e ela, de tão grande e uniforme, parecia nos olhar do mesmo ângulo. Só sumiria mesmo na enseada abrigada do porto.

Sentado na primeira fila do ônibus, vi quando o motorista baixou e levantou o quebra-sol várias vezes. Houve uma alternância de céu como talvez nunca tenha visto na vida, sequer no Ártico. Sol, chuva, neve, neblina – horizonte azul e, de repente, mais plúmbeo do que um asteroide calcinado. No teto das casas, jazia um palmo de neve. E pensar que tanto prazer estava embutido numa tarifa de poucas libras esterlinas. Um dia farei a viagem de carro e vou parar nas estalagens. Mas como garantir que vou voltar a ver aquela incrível mudança de cores? E os mesmos rebanhos de ovinos – pura lã – nos olhando com alguma pena? Daí ser importante não adiar o que é bom. O tarde costuma aparecer no dia seguinte. Viagens e médicos, hoje. O resto, amanhã. Ou nunca.

Chegando ao terminal, a atendente anunciou um atraso. Ninguém se queixou porque sabíamos que os passageiros da véspera tinham sofrido horrores com o mar agitado. Passei o tempo vendo o carinho do velho irlandês com um papagaio grande que levava na gaiola. Falando nessa língua terrível que é o gálico, o homem tentava se fazer doce para o bicho – visivelmente sua razão de viver, o amor de uma vida. 

No desembarque, percebi que não era só o louro que estava deslocado na paisagem gelada, onde os cristais de gelo pinicavam as bochechas. Eu também adentrava um mundo rural, de pessoas simples, ruivas e sardentas. Ademais, gente que maltratava o inglês. Ah, os irlandeses. Só os vendo em casa, em seu elemento, se pode entender Nova York.

À noite, tomando uma Guinness no pub Brennan – só faltou um d final para estar em casa –, rebobinei as cenas de Belfast. Como não pensar naqueles rapazes do IRA, de costeletas, gola cacharel e óculos pesados, cujas fotos em preto e branco eu via espalhadas por Londres? 

No hotel, adormeci pensando na ilha em forma de seio, um lindo flan de pedra. E no papagaio arrepiado que olhava com gratidão para o velho campesino – um fazendo a contagem regressiva do outro.