O livro de Manuel Castells (A ruptura. A crise da democracia liberal. São Paulo: Zahar, 2018), dividido em cinco capítulos, tem como tema central a crise da democracia liberal, que estaria ocorrendo nos países desenvolvidos do Ocidente. A ênfase é sobre os países europeus, particularmente França, Reino Unido e Espanha, e os Estados Unidos. Contudo, é instrutivo para nós, brasileiros, pois nosso país vive, aparentemente, situação similar. Aliás, o próprio autor sugere que os fenômenos que ocorrem naqueles países estudados existem em outros, que vivem sob democracia liberal. 

A crise da democracia liberal é um tema que está sempre em voga, uma década sobre duas. Recentemente, inclusive, há uma grande quantidade de títulos, entre artigos em revistas acadêmicas, jornais e magazines, além de livros e capítulos de livros (Branko Milanovic. Capitalism alone.  The Future of the System that Rules the world. Boston: Harvard University Press, 2019; Nadia Urbinati. Crises e metamorfoses da democracia. Revista brasileira de ciências sociais, vol. 28, n0 82, pp. 5 a 13, junho 2013). Alguns destes títulos tornaram-se Best Sellers, como o livro de Steven Levistsky e Daniel Zibaltt (Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018). Outros títulos não foram campeões de vendas, como o livro de Adam Przeworski (Crises da democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020), apesar do prestígio e reconhecimento internacional do autor.

A Ruptura é um livro de leitura fácil, despido de clichês, praticamente sem referências bibliográficas e que flui, na leitura, com rapidez. Para isso, além da clareza do texto, o autor utilizou o artifício de colocar todos os dados, tabelas e gráficos em uma base na Internet, a que o leitor é remetido a consultar: www.zahar.com.br/livro/ruptura. Nela, podem ser encontrados os dados e as fontes utilizados para construir a exposição. É um artifício interessante, pois facilita a leitura para uma gama mais vasta de leitores, ao mesmo tempo que oferece aos acadêmicos os dados que sustentam a sua tese. Castells, assim, se afasta do puro ensaísmo, muito em moda em tempos de crise, embora o corteje, pois, as suas reflexões vão bem além dos dados.

A tese de Castells é que a democracia liberal está em crise porque os partidos não conseguem mais representar os eleitores. Os governos, por sua vez, não conseguem mais representar os cidadãos. Ou seja, os eleitores não se reconhecem nos seus representantes e os cidadãos não encontram respostas nos governos quanto a suas demandas, na clássica diarquia entre eleitores e cidadãos. Trata-se de uma crise de representação, portanto. Segundo Castells, “Mais de dois terços dos habitantes do planeta acham que os políticos não os representam, que os partidos (todos) priorizam seus próprios interesses…e que os governos são corruptos” (p.14). 

Para o sociólogo espanhol há, em vários países do Ocidente, uma crescente desconfiança dos eleitores em relação aos governos democraticamente eleitos. Em vários países, essa desconfiança se propaga em relação às instituições governamentais e deslegitima a representação política. Para o sociólogo espanhol, esse é o significado das amplas mobilizações populares contra os governos e os partidos políticos no poder. O significado dessas mobilizações, que atravessam o mundo desde 2011, é sintetizado no lema mundialmente conhecido “Eles não nos representam”. Para o autor, não se trata de uma rejeição à democracia, mas às instituições da democracia liberal. O que tem permitido um crescimento de partidos nacionalistas e neonazistas em plena vigência do jogo democrático. Isso está ocorrendo em grande parte dos países europeus, onde os movimentos de extrema direita, claramente opostos à democracia liberal, têm crescido. Vide, por exemplo, a atual campanha eleitoral francesa em que a estrela ascendente é um jornalista polêmico, Eric Zémmour, que considera a tradicional líder da extrema direita, Marine Le Pen, como moderada.

As razões da crise da democracia liberal nos países desenvolvidos, várias e de naturezas distintas, segundo o autor da Era da Informação (três volumes), são analisadas ao longo do livro. Razões recentes, outras mais antigas; algumas estruturais, outras conjunturais. E ele as percorre, por vezes de forma excessivamente rápida, para entender a crise de representação das democracias liberais dos países desenvolvidos ou em desenvolvimento do Ocidente.

Uma das raízes da cólera popular encontra-se no processo de globalização que desestruturou parte das economias nacionais e limitou a capacidade do Estado-Nação. Isso tem criado uma tensão na medida em que os problemas mais relevantes hoje, e que impactam a vida das pessoas, como o crescimento do desemprego, a degradação das condições ambientas de vida, o aumento das migrações, o terrorismo, as crises financeiras, os impactos das inovações tecnológicas são problemas globais. É verdade que as camadas de profissionais de maior instrução (elites cosmopolitas) têm sido favorecidas com a globalização, mas o mesmo não acontece com a massa de trabalhadores formais, sobretudo na indústria, que tem perdido postos de trabalho, constantemente, nos últimos vinte anos. Por sua vez, parte dessas mudanças tem provocado o crescimento das desigualdades sociais, particularmente nos países mais desenvolvidos. Fenômeno que está por trás da vitória em 2016 de Trump, nos Estados Unidos, e do Brexit, na Inglaterra. Assim como tem favorecido o crescimento de movimentos e partidos de extrema direita na Europa. Seus líderes são apoiados pelo voto de pessoas mais velhas, operários de meios socioterritoriais marginalizados, incluindo as pequenas cidades e antigas zonas industriais decadentes.

Para o autor, a crise econômica de 2008/2009 foi mais uma razão que acelerou a erosão da legitimidade política dos partidos e das instituições democráticas nos países estudados. Para muitos eleitores, enquanto os bancos eram socorridos pelos governos, a política de ajuste econômico adotada alimentava o desemprego e corroía a oferta de serviços públicos para a grande maioria da população.  Ou seja, a ação dos governos estimulava o crescimento da desigualdade, aumentando, assim, a insatisfação dos menos favorecidos pela sorte.

A essas razões somam-se os escândalos de corrupção em países europeus como Itália, Espanha e França, e não europeus, como o Brasil. Em 2013, na União Europeia, 80% dos habitantes acreditavam que há corrupção nas instituições de seu país. Em 11 países, entre os quais Grécia, Espanha, Hungria, Lituânia e República Tcheca, este índice superou 90%. Sem dúvida, a percepção da corrupção – uma característica sistêmica da política atual – é um dos fatores que mais corroem a legitimidade das instituições democráticas, levando a que a separação entre o econômico e o político se esfume. Ademais, a corrupção alimenta a política do escândalo, em que os controles e censuras tradicionais se desativam e o “mundo da pós-verdade se instala”. Assim, o vínculo entre o pessoal e o institucional se rompe. 

O terrorismo é outra razão que alimenta a crise das democracias liberais. A introdução da “política do medo” faz com que os cidadãos permitam ser vigiados e controlados eletronicamente. A origem da ameaça, que percorre o mundo, provém sempre dos outros, daqueles de etnia, cor da pele e cultura diferentes. Conforme Edward Said (Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia de Bolso, 2010), a fonte principal do terrorismo é o desprezo da cultura islâmica pela cultura ocidental. No caso da Europa, o terrorismo tem três fatores mais imediatos que alimentam o medo: a discriminação de 20 milhões de muçulmanos, mais da metade nascida em solo europeu; a referência ao Jihad global, que atrai jovens de várias nacionalidades; e, a perda de sentido de vida por parte dos jovens, que parece ser a motivação mais profunda. 

De todos os fatores supracitados, o mais relevante consiste no processo de globalização. É sobre ela que se ergue a aceleração das mudanças socioeconômicas, em parte alimentadas pelo aumento da velocidade das inovações tecnológicas e sua disseminação, que se inicia na década de 1980. Os impactos políticos dessas mudanças tecnológicas e socioeconômicas ocorrem de maneira mais acentuada nos territórios onde se desestrutura a dinâmica econômica e, assim, aumenta a insegurança e a angústia entre seus habitantes; provocam movimentos de fuga em direção ao Estado, à religião, à família ou à etnia. E, com isso, ressuscitam valores tradicionais que pareciam em extinção. São reações à insegurança, à angústia e ao medo. O futuro para as populações desses territórios, com suas economias destruídas, é tão obscuro e ameaçador que seus habitantes correm para o passado, em geral, idealizando-o. 

Nos quatro países estudados por Castells (Estados Unidos, eleição de Trump; Reino Unido, vitória do Brexit; França, eleição de Macron, e Espanha, com as mobilizações que levaram à criação do Podemos e à derrocada do Partido Popular, partido conservador hegemônico no governo) a globalização tornou-se o inimigo comum e o nacionalismo a ideologia da fuga. Na percepção dos eleitores e cidadãos, a globalização era (é) o bode expiatório de todas as mazelas, do desemprego à imigração, passando pela corrupção e o terrorismo. 

Em grande parte, a possível reconstrução da legitimidade política, anunciada pelas forças de extrema direita, passa pela afirmação de um líder ou uma causa em “contradição com as instituições deslegitimadas”, conforme Castells. Daí a esperança, manifesta por milhões de eleitores nesses países, de uma nova política. Aliás, não foi esse o mote que elegeu Macron na França, Jair Bolsonaro no Brasil e Trump nos Estados Unidos?

Uma das consequências (e causa) desse fenômeno de crise democrática é a constituição do Estado Rede, que se substitui ao Estado Nação, alimentando uma crise identitária. Segundo Castells, esse tipo de Estado articula os grupos sociais que habitam a Nação a partir de discursos particulares que enfatizam suas especificidades e diferenças. Dessa forma, incrementa-se uma fratura cultural que se une à fratura social, pois a “identidade política” vai sendo gradativamente substituída pela “identidade cultural”. Desfaz-se a identidade política de esquerda ou direita, em favor de uma identidade cultural de grupos, territórios, etnias e corporações.

Apesar do rigor da análise do Castells uma leitura atenta permite constatar algumas lacunas na sua argumentação. Duas pelo menos são relevantes. 

A primeira é saber a que se refere a crise: à democracia liberal ou ao governo representativo? A crise nos países estudados refere-se aos princípios liberais da democracia ou aos governos instalados em seu nome? Os dois não podem ser confundidos. Afinal, o governo representativo contém elementos democráticos e não democráticos. Conforme lembra Bernad Manin, em seu livro clássico (Principes du gouvernement représentatif. Paris: Flamarion, 1995), a democracia moderna se constitui na França e nos Estados Unidos, no final do século XVIII, com o “esquecimento” do preceito democrático dos gregos antigos – o sorteio, e a conservação do preceito aristocrático – a votação. A pergunta é relevante porque parte das manifestações e protestos que Castells estuda ou apenas cita são demandas de mais democracia, como é o caso da “Primavera Árabe” e mesmo das mobilizações dos ‘Indignados” na Espanha. Os espanhóis, na essência, protestavam contra as manobras de políticos para minimizar ou desrespeitar o jogo democrático por meio da corrupção ou da interferência do poder econômico no jogo democrático. Portanto, esses protestos foram mais contra os desvios do governo representativo (eleito), do que contra o princípio democrático da organização política. Os manifestantes não rejeitam a organização democrática, mas a organização aristocrática que se expressa nos votos e constitui os governos. 

No norte da África e Oriente Próximo as pessoas se manifestaram entre 2011 e 2013, uns de forma mais aguda do que outros, em 18 países, entre os quais Tunísia, Egito, Líbia, Síria e Argélia, contra os governos autoritários. Todos, portanto, em favor da democracia, embora não tenham sido, em geral, vitoriosos. Estes, como o movimento Occupy Wall Street, são apenas citados no livro de Castells, sem grandes considerações. Contudo, estes como aqueles, tinham em seus fundamentos a demanda por democracia. No caso específico do Occupy Wall Street seu motor principal era a denúncia da crescente desigualdade, cujas raízes se encontram no aumento do poder do capital financeiro. Não era contra a democracia, mas as suas distorções e ineficiências, devido à apropriação incorreta dos governos pelo poder econômico. Com isso, desfazendo a distinção essencial entre o espaço legítimo da igualdade (democracia) e o espaço, igualmente legítimo, da desigualdade (economia).

A segunda lacuna relevante é que o autor de Ruptura não toma suficientemente em conta os impactos decorrentes do crescimento da desigualdade social entre os países e no interior destes, inclusive nos países desenvolvidos e com democracia consolidada. Esse fosso, que se escava em todo o mundo, tem como um de seus efeitos reduzir o poder e o papel das classes médias (e não falo de trabalhadores com melhores salários, como se fez no Brasil na época de Lula). Ora, a base da democracia liberal, sobretudo após a II Guerra Mundial, período da primeira expansão democrática, foi o crescimento da economia e das classes médias. Na segunda década do século XXI, o crescimento econômico e das classes médias se arrefece, as desigualdades crescem, e a expansão democrática, que conheceu uma nova expansão após a queda da URSS, definha. A persistir o movimento de redução das classes médias, a crise política de representação deve se aprofundar, e em assim sendo, a democracia poderá estar verdadeiramente em risco.

Essas duas observações críticas, porém, não tiram o valor do livro de Castells e a sua pertinência para entender melhor o processo de mudanças políticas em escala mundial, no qual o mundo ocidental está envolvido, Brasil inclusive.