Antônio Maria.

 

O afeto da noite.

Concluo a aula. São oito horas da noite. Dou por findos os trâmites pedagógicos. E vou dar a primeira olhada nas notícias. Chama minha atenção matéria sobre Vento Vadio (Guilherme Tauil, Ed. Todavia, 2021). Trata-se de antologia de crônicas de Antônio Maria. Pernambucaníssimo. Primo de Cícero Dias. Descendente dos donos da usina Cachoeira Lisa, em Gameleira. Adotado pelo Rio de Janeiro. Cronista, compositor, notívago. E de intenso, desesperado gosto pela vida. 

Ligo para a livraria. Depois de confirmar a disponibilidade do exemplar, pergunto:

– A que horas vocês fecham?

– Vinte e duas, responde o atendente.

– Por favor, reserve. Estarei, aí, em meia hora.

Apanhei o exemplar e zarpei para a pizzaria. Velha conhecida. Pouso semanal nos tempos em que morava em Boa Viagem. O gerente, ao me ver, aproximou-se:

– Há quanto tempo?

– Pois é, ando por outro lado. Bateu saudade. Vim.

Sentei com Ceça na mesa debruçada à calçada. Para olhar o mar. Sentir antiga brisa que me acaricia a pele. Reciclo dores e amores. Fico, por instantes, ouvindo o rumor de ondas. Lembranças me trazem a visão de jangadas, saudades triangulares, como disse o poeta. Revejo o sabiá laranja que me cumprimentava na primeira hora da manhã, altura da décima segunda laje. 

Jantamos, fomos para casa. Fui direto para a poltrona. Ávido pelas crônicas de Maria. Ele foi, de longe, o maior cronista da noite. Dizia que todos os infortúnios se liquidavam nos balcões de bar. E todos os afetos alimentados no escuro de boate. Como o que ele nutria por Caymmi. Certa vez, em Salvador. Numa saudação ao patriarca baiano, disse: “Deixa que me orgulhe e me sinta mais gente pela ventura de contigo ter andado, de mãos dadas, por caminhos duros ou macios, em horas de riso ou tristeza”.      

Maria levou uma vida atribulada. Mas também de beleza, de sentimento e de audácia. Viveu a vida que queria ter vivido. Preferência não se discute. Mas, no primeiro time de cronistas, como Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, o autor de Menino Grande tem lugar.   

Sua relação com Braga nunca foi pacífica. O capixaba, considerado Príncipe dos cronistas brasileiros, era ciumento. Nas letras. E nas companhias femininas. Especialmente quando se tratava de Tônia Carreiro. Morador de Ipanema, na cumeeira de um edifício, tinha domínio de mares e ventos. Íntimo dos ventos, chamava-os pelos nomes, sudoeste, noroeste, terral. 

Braga era devoto do verão. Entre novembro e abril, dedicava-se às graças do sol, das amigas e dos encontros. Quando lhe propunham um projeto naquele período, respondia: 

– Vamos deixar pra maio.

Maria morou em vários endereços no Rio. Passou temporada na Urca. Nessa época, escreveu:

“Daqui, vejo os navios entrar e sair. Hoje, por exemplo, passaram um Ita, um Ara e um enorme. Os navios entram gravemente na Guanabara, sem olhar para trás. Dão a impressão que, atrás deles, vai uma orquestra de trombones e tubas, tocando uma marcha triunfal, quase fúnebre”.

Depois, ele escreveu sobre a solidão do peignoir. Mas isso é outra história.    

A casa de janelas verdes (2).

Antes de se fixar no Rio, Antônio Maria tentou a vida radiofônica na PRA 8, no Recife. Depois, em Fortaleza e em Salvador. Sempre em veículos ligados ao império de Assis Chateaubriand. Manteve boas relações com João Calmon e com Odorico Tavares. 

No Rio, seu prestígio aumentou quando ele compôs Ninguém me Ama. Conseguindo que Nora Ney, uma das cantoras mais admiradas nos anos 50, gravasse a canção. E, pasmem, Nat King Cole a ouviu, gostou e também gravou. 

O fato é que o talento de Maria era múltiplo. E real. Repórter, locutor, compositor. E cronista. Sua crônica tinha perfil específico. Não competia com o lirismo de Rubem Braga. Nem com o barroco brasileiramente torturado de Paulo Mendes Campos. 

Maria assumia estilo próprio. Formando um arco de cromatismo literário afirmativo. Expunha o cenário prosaico da vida urbana carioca. Nos seus contornos sociais mais variados. Passeava pelo lirismo acalentado na sensibilidade de olhos que marejavam com o humano sentir. Alcançando o verso trágico de poeta feito prosador em sofrimentos amorosos infindos.

Talvez por isto tenha escrito: “Andei trinta anos para trás e descansei de minha escravidão, de minha vida feita de horas e números, onde o dever do êxito me obriga a refugiar-me na esperança de voltar um dia ao chão de nascença e, sobre sua relva, andar de pés descalços”.

Ao falar sobre suas origens, Maria era largo. Sobre Carnaval e Natal, Natal e Carnaval, escreveu: “No Carnaval, minhas calças eram brancas e meus sapatos de tênis. As camisas, sempre feias, variavam. No Recife, o Carnaval começava no Natal. Ou melhor, não havia Natal no Recife. A 24 de dezembro, os blocos saíam às ruas com suas orquestras. Mas, na noite de 24 de dezembro, quando a gente pensava que seria uma tem silenciosa, o Vassourinhas estourava numa esquina, acordando-nos, na alma, uma alegria guerreira, impossível de explicar agora, tanto tempo e fadiga são passados”.

Certa ocasião, o poeta Jayme Ovalle manifestou desejo de conhecer Maria. O mineiro, Fenando Sabino, levou Maria até o apartamento dele. Sentaram-se na sala. O anfitrião foi buscar uma garrafa de uísque irlandês que tinha gosto de madeira. Conversa vai, conversa vem, de repente, Ovalle levantou-se e apontando para Maria, sentenciou:

– Você é bom !

A primeira garrafa do irlandês foi esvaziada. Uma segunda garrafa foi providenciada. Maria estava quase bêbado. E feliz. Ovalle trouxe um violão. E Maria cantou uma das músicas compostas pelo poeta de Minas. Então, para encerrar a tarde já encharcada, Sabino contou que, no Congresso Eucarístico, no Rio, alguém criticou os paramentos dos eclesiásticos. Ovalle era muito, muito católico. Virou-se para o crítico e disse: – Você já viu um amanhecer ? Você já viu o sol que faz de manhã ? Deus é assim. Deus sempre foi exagerado, meu filho.

Maria nunca esqueceu sua terra, seu massapê. Lembra sua tia inglesa, Tutsie, viúva de Manuel Gitirana, moradora no Poço da Panela. Uma casinha de janelas verdes, com canteiros de rosas. Lá moravam também seus primos, Emmanuel e Edward. O tempo, com sua névoa, os distanciou. 

Assim Maria escreveu: “Por trás dos anos e das solidões, por trás dos mortos e dos nascidos, por trás daquela madrugada ainda por clarear-se, distante e silenciosa, diluída no tempo, sutil como um pressentimento, avistava-se ainda a casinha de janelas verdes, do poço da Panela”.