Informação incompleta, a que estamos submetidos, enquanto vivos, é praga e bênção. Ora praga. Ora bênção. Praga é, por exemplo, a inexorável chance, em qualquer viagem aérea, de o veículo terminar no chão antes de alcançar o destino. Ou no mar. Benção é aquele surpreendente belo domingo ensolarado, quando a previsão era de tempo nublado. Informação completa, se disponível, nos traria um mundo bem outro. Em eleições, diferentes discursos e estrondosa vaia a cada promessa irreal. Mentiras levariam a frustração eleitoral e, por isso, não seriam ditas.  A conquista da confiança dos eleitores dependeria – essencialmente – de clareza, consistência, capacidade de persuasão. Enfim, da tão valorada retórica na formação romana. Mas, não se deve gastar massa cinzenta para imaginar o completamente impossível.

Informação incompleta, na forma de conhecimento insuficiente para infundir certeza sobre fatos futuros vai existir sempre. Conhecimento incompleto pervade áreas, e pode permanecer insuspeito por bastante tempo. Até certo tempo artefatos eram construídos de madeira. Seria completo o conhecimento dos construtores a respeito do que repetidamente construíam? As dimensões das peças componentes dos artefatos variavam com a temperatura e também com a umidade, o que modifica o peso. As peças que são objeto de movimento são afetadas quando peso e dimensão variam. Mesmo assim, o avião mais produzido e utilizado antes da desgraça chamada Primeira Guerra Mundial tinha na madeira de bambu a maior parte da estrutura. Outros, maiores, eram de outras madeiras de maior peso por unidade de resistência, havendo similar dificuldade de se estabelecer a real resistência. Não se podia prever com exatidão o peso, o que exigia capacidade de se prever a dinâmica da umidade do ar. Mas se admitia, para fins práticos, que o peso era imutável. E é assim que se faz na prática, porque dentro de certos limites a diferença de funcionamento provocada por mudanças de peso, derivadas de mudanças na umidade do ar, não é detectável. Ou é detectável, mas tolerável.

O progresso deu um salto quando outro importante material de construção de artefatos começou a ser intensamente usado, o aço. Agora, certeza absoluta sobre o peso, que não varia mais com a umidade do ar, embora a temperatura continue a alterar as dimensões. Mas, mesmo sobre o peso de cada peça de aço de um artefato, podemos ter algum problema. Se uma peça de aço desliza sobre outra há um filme de óleo lubrificante entre as duas. Uma peça navega sobre a outra. Parte do óleo está presa à parte fixa, outra à parte móvel. Para efeitos práticos a parte presa se incorpora à parte móvel. Do ponto de vista prático é como se o peso da parte móvel aumentasse. Podemos conhecer o peso da parte móvel em termos de milésimos de milésimos de grama. Mas, o peso efetivo em termos de reação a movimentos incorpora essa finíssima camada presa à peça. Como medi-la exatamente? Se a peça for removida de onde está para que se proceda à medição, já mudou o que se pretende medir. Há uma estimação, um cálculo, agora menos preciso do que a medição do peso da peça isenta de óleo. A informação sobre o exatíssimo valor do peso efetivo não está disponível dada a tecnologia usada até o momento. Ou seja, usamos um artefato sobre o qual não se tem conhecimento completo. Mas não devemos nos perturbar por isso. Tomamos na prática um valor para o peso que funcione bem nas condições usuais mais exigentes. Estamos falando de motores, importantes equipamentos que viabilizam a construção de artefatos que permitem multiplicar nossas forças. Andar com vinte e muito mais vezes maior velocidade do que a pé, se deslocar na água de forma contínua por dias e dias, e até uma ação que Ícaro tentou, mas não se deu bem: voar como pássaro e com muito maior velocidade. 

Um aparelho complexo como um avião resulta de montagem de certo número de artefatos. Todavia, mesmo o mais simples avião, pequeno e leve, como o Demoiselle, de Santos Dumont, envolve se trabalhar com informação ou medida inexata. Tal modelo tem apenas um motor e respectivos comandos, um tanque de combustível, uma hélice, estrutura basicamente de bambu, áreas aladas, e o trem de pouso. No entanto, não há conhecimento preciso sobre o funcionamento do motor e o peso da aeronave. Portanto, não é de conhecimento do piloto o exato funcionamento aerodinâmico do aparelho que comanda. 

Nos aviões modernos, grandes, com peso tamanho, ficaria literalmente inviável o controle manual direto dos comandos. Há mecanismos que intermediam a relação entre o piloto e a peça que lhe obedece ao comando, gerando inúmeras oportunidades de falha em sistemas complexos como os aviões modernos. Redundâncias nos comandos garantem fantástica minimização de possibilidades de incorreção no processo de intermediação. Mas não completa eliminação da possibilidade de incorreção. Que lhe parece uma chance de um em um bilhão de ocorrer uma falha em uma determinada função de um determinado equipamento? Mas isto não significa que devamos considerar o equipamento como, na prática, completamente livre de falhas. Quantas vezes o comando é usado durante um voo? Em condições normais, um comando pode ser usado um certo número de vezes por decolagem mais aterrisagem, dois procedimentos obrigatórios, qualquer que seja a distância da viagem. Pode também ser em termos de número de vezes, por hora de voo, em que o comando é usado. A chance de falha em um voo não é de uma em um bilhão de ciclos, por exemplo. É do número de usos do comando num voo, dividido por um bilhão. Como são várias fontes de falhas, tome-se, como exemplo, “um por 10 milhões” como a chance de um voo acabar mal. Numa viagem isolada, devemos tomá-la como completamente livre de uma indesejada fatalidade. Mas com mil e duzentos voos por ano? E nos vinte e cinco anos que o avião vai ser usado? São trinta mil voos. Se voam mil desses aviões, a chance é de que, a cada trinta anos, três voos acabem mal. 

Em cada viagem, o risco é baixo, baixíssimo; se não, não deveríamos embarcar. Mas não é nulo. Ninguém está livre de que um voo termine mal. Tampouco nenhuma carga, mesmo que seja o altar-mor do Mosteiro de São Bento de Olinda. Por certo os responsáveis pela ideia de recuperar o altar-mor para expô-lo no Museu Guggenheim de Nova Iorque, por uma temporada, não esqueceriam o risco de na viagem perder o altar. Que altar seria perdido? Não o original feito pelos artesãos séculos atrás. Num momento ele foi entregue pronto. Dia seguinte, já não era o mesmo. Havia sofrido a inexorável degradação de um dia. O uso e o próprio tempo não param de transformar as coisas. A resina das madeiras nobres as protege dos cupins por literalmente dois séculos. Degradada pelo tempo, deixa de protegê-las. A degradação diária não é percebida por nós, mas é continuada. Os cupins vão fazendo visitas e testes. Um dia a degradação atinge o nível de a resina não evitar que a madeira seja alimento de cupim. O altar já tão consumido não manteria sua forma exterior por muito mais tempo. Se não fosse refeito, não viria a ser nem visualmente o mesmo. 

O avanço tecnológico permitiu que imagens do altar inteiro e de suas peças interiores, em convenientes diversos ângulos, reconstituíssem as formas originais. Reconstituído uma vez, de tal forma que olhos humanos não poderiam diferenciá-lo do original, pode ser reconstituído mais vezes. O seguro pago pelo Museu Guggenheim do Nova Iorque permitiria a completa nova reconstituição do altar, se consumido antes de reinstalado no Mosteiro. Resta saber qual o risco maior de sofrer danos, se nos voos, ou nos traslados terrestres, ida e vinda, entre o Mosteiro e o aeroporto do Guararapes Gilberto Freyre, e entre o aeroporto de Nova Iorque e o Museu em que ficou exposto por um certo tempo.

Em eventos assim há perdedores e ganhadores. A reconstrução adicional do altar-mor, se o avião caísse, ou motivo outro houvesse que fizesse disparar o pagamento do seguro, não seria exceção. Tal pagamento, obviamente, não apagaria o choro dos familiares dos tripulantes perdidos. Mas, como na recuperação que permitiu a temporada de exposição do altar-mor em Nova Iorque, um certo  número de estagiários teria oportunidade de obter o benefício do acompanhamento dos trabalhos. Seria um surplus trazido pelo desastre. Ao fim, o altar de volta a seu lugar, com usufruto garantido por mais um bom tempo. E alguns estagiários a mais treinados.