Não tenho nenhum prazer em dizer isso, porém,   em mais de meio século  trabalhando nas mais   diferentes Redações de veículos de imprensa deste país, o meu maior desafeto foi, profissionalmente,  um religioso, “um homem de Deus”. Chamava-se José Cardoso, o Dom  José, Arcebispo de Olinda e Recife. Um   carmelita que chegou para substituir Dom Hélder Câmara, com a missão de desmontar todos os programas e projetos sociais desenvolvidos pelo seu antecessor. Dom Hélder era então um ícone da chamada “Igreja Progressista”, muito forte na América Latina, mas aos poucos minada e boicotada pelo Papa João Paulo II, com o indispensável apoio do cardeal Joseph Ratzinger.  O alemão, que o substituiu no Vaticano como o Papa Bento XVI,   e depois renunciou, quando viu que a carga da Igreja Romana era muito pesada para suas costas. Dom José Cardoso era um fiel seguidor desses dois conservadores, e teve seu nome levado ao Papa por Dom Eugênio Sales, Cardeal-Arcebispo do Rio de Janeiro, que tinha lá suas diferenças com Dom Hélder.

Mas vamos começar pelo começo.

Tão logo desembarcou no Recife, havia uma justificada curiosidade, da Imprensa e dos católicos, em saber quem era o novo Arcebispo – especialmente porque lhe caberia substituir Dom Hélder. Ocupar o lugar de uma das figuras mais carismáticas da Igreja dita “do Terceiro Mundo”, o religioso que não se curvou e denunciou as arbitrariedades cometidas pelos Governos Militares, e que foi por esses mesmos Governos perseguido e boicotado. Dom Hélder deveria ter sido, por duas vezes, indicado para o Nobel da Paz. Não foi. O Ministério das Relações Exteriores fez todos os esforços para impedir sua candidatura. E conseguiu.

Eu dirigia o Jornal do Commercio de Pernambuco, e depois de inúmeras negativas a um pedido de entrevista para nossos repórteres, dom José Cardoso concordou em falar para o JC. Mas desde que recebesse com antecedência um questionário com as perguntas, e que o texto só fosse publicado com a sua aprovação. Não fazia parte da cultura do jornal esse comportamento. Nem enviávamos questionários, nem permitíamos que o entrevistado lesse o texto antes da publicação.  Mas, como as relações entre o Jornal e a Arquidiocese já andavam meio esgarçadas,  por conta de uma série de artigos que nós vínhamos publicando, resolvi acatar as colocações do Arcebispo. Essa série, assinada por Juracy Andrade,  falava  do “Desmonte da Igreja Católica em Pernambuco”.  Juracy Andrade tinha fontes confiáveis na Igreja, ele mesmo era um ex-dominicano, largou a batina mas conservou as amizades. Seus textos batiam de frente com as versões de Dom José.  Foi para tentar reabrir  o diálogo com a Igreja “conservadora”  que resolvi aceitar as condições propostas, e preparei um  questionário para ser respondido pelo Arcebispo. Questionário longo, amplo, diverso, com cerca de 20 perguntas, onde se falava de tudo que estaria acontecendo, ou não acontecendo,  na Arquidiocese de Olinda e Recife. Indagava sobre o fechamento de instituições religiosas criadas pelo antecessor, as  transferências compulsórias de sacerdotes, a  briga “surda” entre católicos conservadores e progressistas, etc. Entre  muitas outras questões, eu perguntava  como ele se sentia ao substituir um personagem com o perfil de Dom Hélder, conhecido internacionalmente, objeto de reportagens em vários jornais do mundo, amado e reverenciado por uma pregação que alguns consideravam “uma luz na escuridão do Terceiro Mundo”.

Dom José não “engoliu a isca”. E respondeu: “Eu não vim para substituir Dom Hélder Câmara. Dom Hélder é insubstituível. Até parece que Deus fez Dom Hélder e depois jogou fora a fôrma. Eu sou apenas um sucessor, aquele que vem depois”. Para resumir, publicamos a entrevista completa, assinada por mim, ocupando  duas páginas de uma edição de domingo, quando a tiragem do jornal crescia cerca de 20 por cento em relação ao restante da semana. O Arcebispo ficou feliz e ligou agradecendo. E pensava que com essa entrevista o jornal  também daria por encerrada a série assinada por Juracy Andrade, com novos episódios sobre o “Desmonte da Igreja Católica em Pernambuco”. Ele estava enganado. A série continuou. Foi a partir daí que eu e o jornal passamos a integrar a lista dos “inimigos” de Dom José.

Antes de tomar posse, mas já indicado para o cargo pelo Vaticano, dom José Cardoso pediu, e conseguiu, que o então Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Olinda e Recife, dom Lamartine Soares, reunisse, no velho Seminário de Olinda, todo o clero pernambucano, para um primeiro contato  e uma porta aberta para as ações futuras. Ele entendia que essa era a melhor forma de deixar claro quais seriam as prioridades e diretrizes da Arquidiocese sob seu comando, numa relação que pretendia produtiva e duradoura. Esse encontro, pelo depoimento em “off” de alguns dos presentes, não agradou. O novo Arcebispo desmanchava e distorcia muitas das iniciativas do seu antecessor.  Embora tenham sido feitos  todos os esforços para manter essa reunião em sigilo, o fato vazou, e alguns repórteres procuraram Dom José para falar sobre esse  encontro. Ele recusou-se, e não gostou  que essa reunião sigilosa houvesse  chegado ao conhecimento da Imprensa.  A  partir daí, quase sempre recusava qualquer pedido de entrevista, mesmo que o clero local estivesse em ebulição.  Ciente de  que cumpria uma missão, ele não recuava. Um dos atos de Dom José que mais repercutiram na época  foi o afastamento do Padre Reginaldo Veloso, vigário da Igreja do Morro da Conceição, carismático e querido pelos fiéis, mas “muito avançado” para os padrões do Arcebispo. Esses e outros episódios chegavam à Imprensa – e o Jornal do Commercio publicava todos.  Quando o Bispo de Trento, na Itália, chamou de volta dois padres italianos de sua Diocese,  que estavam em Pernambuco, divulgou-se que ambos foram mandados de volta por determinação do Arcebispo. O que era uma inverdade. E isso  causava cada vez irritação a Dom José.

Bom, como mesmo depois da entrevista  – e uma  semana  de trégua  – o JC retomou  a publicação da série assinada por Juracy Andrade, dom José Cardoso  passou a ver o jornal como um adversário real de sua gestão – o que era também  um grande engano. Os padres mais conservadores e mais  ligados ao Arcebispo passaram, nas missas dominicais, a pedir que os fiéis daquelas paróquias cancelassem as assinaturas do Jornal  do Commercio, num novo processo de Inquisição que foi cumprido pelos radicais. Vigários  mais liberais, como o padre Edvaldo Gomes, da Paróquia de Casa Forte, por exemplo, não entraram nessa,  e o padre Edvaldo se recusou a agir como censor. Mais tarde, veio a sofrer uma  punição de Dom José (a única em toda sua longa vida de sacerdote), por ter recebido na Igreja alguns praticantes de outras religiões. Padre Edvaldo, já falecido,  era assinante e continuou um leitor fiel do JC, enquanto viveu.

Mas, enquanto Juracy Andrade não parava de publicar fatos novos relativos ao “Desmonte da Igreja Católica em Pernambuco”, não paravam  também as pressões junto à alta direção da Empresa, vindas dos conservadores, pedindo o fim das críticas à gestão do Arcebispo  e a demissão  do repórter que assinava a série,  e do diretor da Redação, que a publicava. Não sabiam que os controladores do jornal jamais se submeteriam a  esse tipo de chantagem. Mesmo assim,  chamei Juracy para uma conversa franca.  Contei o que estava ocorrendo, e perguntei se ele ainda tinha fatos sobre o desmonte da Igreja para relatar. Ele falou que havia praticamente escrito sobre tudo,  desde a insatisfação de grande parte do clero, até o trabalho para apagar qualquer herança do antecessor que estivesse em desacordo com as diretrizes  do novo Arcebispo. Disse a ele para escrever mais um artigo – o último, até para esclarecer aos leitores que nada mais havia para contar. E as relações entre o Jornal e a Arquidiocese nunca mais foram as mesmas, enquanto durou a gestão de Dom José Cardoso.

Deixo claro aqui que eu nada tinha contra o Arcebispo – nem contra nem a favor – mas tão somente cumpria o que julgava ser minha obrigação, como diretor de um Jornal que era líder de circulação em Pernambuco. Se eu nada tinha contra Dom José, alguns integrantes do clero tinham.

Na tarde de uma sexta-feira, alguém da portaria do jornal, que ainda tinha sua sede na Rua do Imperador, liga para minha sala e avisa que um religioso queria   subir à Redação para falar comigo.  Mandei    que subisse. Por uma questão de precaução, chamei também à minha sala o diretor-adjunto da Redação, o jornalista Roberto Tavares, um dos melhores profissionais que já passaram pelas Redações de Pernambuco. O religioso que me procurava era Dom João Terra, um dos Bispos Auxiliares da Arquidiocese de Olinda e Recife, que estava se despedindo de suas funções.  Um homem de vasta cultura, especialista em “línguas antigas”, conhecedor profundo do Hebraico e do Aramaico, Dom João Terra não poupou o Arcebispo: classificou Dom José Cardoso como “raivoso”, “mesquinho”, “despreparado para a função”, “desagregador”, etc.,  que se deixava  conduzir por intrigas feitas pela irmã, uma ex-freira que era uma espécie de gerente do Palácio dos Manguinhos, residência oficial do Arcebispado. Dom João Terra confessava que estava indo morar num pequeno cubículo cedido pela Arquidiocese de Brasília,  mas aceitaria qualquer coisa, menos continuar ao lado de Dom José Cardoso. Ao se despedir, fez uma observação: nada daquilo que ele estava me contando era “off”, eu estava liberado para publicar quando quisesse e como quisesse.   Não publiquei. Iria reabrir uma ferida que inda não cicatrizara e, mesmo  tendo o jornal se afastado de fontes ligadas à Arquidiocese, aquilo seria uma espécie de “silêncio construtivo”.

Nesse clima de calmaria, recebi, pelos Correios,  uma carta datada do dia 29 de dezembro de 1998, enviada por Dom Eugênio Sales, Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro. Registrava a publicação, pelo Jornal, de um artigo com o título “O Rebanho do Arcebispo”, assinado por um articulista identificado com Dom José Cardoso. Enaltecia  a minha “estatura moral” por ter publicado o artigo, ao mesmo tempo em que dizia  sofrer “pelo mal que uma minoria faz à Igreja de Jesus Cristo, não só em Olinda e Recife, nessa campanha orquestrada contra a verdadeira Igreja do Papa João Paulo II”. Dom Eugênio devia estar profundamente arrependido por ter trazido  de uma pequena Diocese do interior de Minas Gerais aquele religioso tímido e inexperiente, para comandar uma Arquidiocese  com a dimensão daquela de Recife e Olinda.  Guardei a carta de Dom Eugênio,  mas não registrei o recebimento. Pouco adiantava dizer ao Cardeal  que o jornal jamais tomou o partido de “a” ou “b”,  publicou o tal artigo assim como divulgou a série escrita por Juracy Andrade,  sem julgar um lado ou o outro. E cada um que fosse em frente com a sua verdade.

De Dom José, sobre quem escrevi depois um artigo mais “duro”, por entender que ele deixou a Arquidiocese “órfão de seguidores e  viúvo de amizades”, há que se louvar a coerência: no dia em que completou a idade limite para deixar o cargo, pegou um avião, foi ao Vaticano e entregou sua carta-renúncia. Na volta, recolheu-se numa instituição carmelita, com sua fé e sua solidão. E nunca deu uma entrevista sobre aqueles dias tenebrosos, onde muitos brigavam pelo amor de Deus.