Santos Dumont e seu 14 Bis.

 

Acrobacias aéreas se tornam públicas quando performadas com aviões. O céu, palco. Os espectadores, espalhados em áreas que ofereçam visibilidade, notadamente praias. Por um certo tempo outros atrativos são esquecidos e se dá um misto de incredulidade, admiração, apreciação estética. Há também performances mais restritas, como no âmbito de um campo de pouso, com vistas para a pista. É aí que se pode sentir a emoção de ver um voo rasante com um avião em posição invertida. Acrobacias aéreas exigem destreza e exibem beleza. Extasiam crianças, entusiasmam adultos de cabeça jovem. Em todas é exigido o comando lateral, de girar o avião em torno de seu eixo longitudinal.

Acrobacias aéreas propiciam momentos memoráveis, mas relativamente raros no âmbito do uso geral dos aeroplanos. Foram realizados, na quinta-feira 25 de julho deste 2021, sobre este castigado globo terrestre, 230 mil voos, conforme acompanhamento por satélites, excluídos voos menos expostos à observação, a exemplo de voos militares (por segurança de suas nações), e voos de transportadores de drogas proibidas, cuja tentativa de menor visibilidade pode garantir bom êxito em atividades ilícitas.

Exceção feita aos helicópteros, um voo sem uso dos ailerons só na condição tão rara, que se pode dizer impossível, de se ter o eixo da pista de decolagem rigorosamente alinhado com a trajetória em linha reta, num plano vertical. Também rigorosamente alinhado o eixo da pista de aterrisagem e sem que a mais leve brisa houvesse, que exigisse compensação para manutenção da trajetória (exatamente alinhada com este plano vertical no qual se descreveria a trajetória). Se houver desalinhamento de uma pista, de decolagem ou aterrisagem, ou se um vento com componente horizontal perpendicular à trajetória do voo houver, o uso do leme de direção e logo dos ailerons é o que, no mínimo, deverá ser feito. E cada vez que o vento mudar de direção ou intensidade, uma mudança de ângulo do eixo principal do avião deverá ser feita, para se manter a trajetória. E, cada vez que se aciona o leme de direção, se acionam os ailerons. Haja uso dos ailerons em cada voo.

Para dobrar à direita, o piloto baixa um tanto a ponta da asa direita. Ele sabe quanto a deve baixar. Inicialmente, o ato de inclinar lateralmente o avião – pela ação dos ailerons – e a mudança de direção da trajetória, com o leme de direção, são movimentos articulados. Alcançado o ritmo do movimento de rotação em torno do eixo vertical, ou seja, o ritmo em que vai dobrando à direita, o piloto volta o comando da inclinação lateral, os ailerons, a uma posição bem próxima da posição neutra, mantendo a inclinação adequada das asas, segurando o avião na inclinação lateral correta. Isso, enquanto vai fazendo a volta à direita pretendida, girando em torno do eixo vertical ao plano de voo. E, não voltando o comando dos ailerons, mantendo-o a provocar continuidade do movimento de rotação ao longo do eixo da aeronave, e se verá o que acontece. Continuar a girar em torno do eixo longitudinal leva a aeronave a imitar a broca de uma furadeira. Interrompe-se a curva para a direita em meio a um comportamento louco da aeronave. Se inexperiente o piloto, a trajetória horizontal vai se tornando vertical. Isso mesmo, queda de bico. Prato cheio para as “redes sociais” e TVs. Dia seguinte, destaque em jornais – outrora em papel, hoje eletrônicos. Ainda bem que os pilotos interrompem, no tempo devido, a rotação em torno do eixo longitudinal.

A volta padrão, para maior conforto dos passageiros, toma 2 minutos, 120 segundos, para perfazer os 360 graus. Na volta padrão, portanto, o avião vai girando horizontalmente 3 graus por segundo.  Quando vai completando a volta pretendida, vai retornando à posição neutra o leme de direção, enquanto faz novo movimento de inclinação lateral, agora tratando de voltar a nivelar as asas na posição horizontal. Se prefere a esquerda, só substituir direita por esquerda. Na direção que vai mudar, na asa que vai baixar. O avião não tem tendências. Se tiver, é grave patologia, não ande nele. Pode fazer curvas sem inclinar as asas, mas vai derrapar no ar e fará uma curva de mais difícil controle e de menor nível de conforto para os passageiros.

Neste 12 de novembro de 2021 completam-se 115 anos do primeiro voo com ailerons, nos arredores de Paris. Voo previamente anunciado, fotografado, fotos em que os ailerons são inquestionadamente visíveis. Também filmado. Presença de dezenas de repórteres, milhares de entusiastas da aeronáutica. O Prêmio Aero-Clube de France (instituído em outubro 1904, largamente divulgado no inteiro planeta, especialmente no Ocidente) foi então concedido, outorga devidamente provida pela presente comissão julgadora. Dado amplo conhecimento ao público internacional. Registrado como primeiro voo homologado em ata própria da Federação Aeronáutica Internacional, em papel, ata intensivamente copiada mundo afora, e na qual se lê:

…Alberto Santos-Dumont vient de réaliser à bord d’un appareil de sa conception, devant des milliers de personnes, le premier record homologué de l’histoire de l’Aéronautique, devant les commissaires de l’Aéro-Club de France…

Fato comentado em jornais e revistas ao redor do mundo.

Até então, inclinar as asas girando a aeronave em torno de seu eixo horizontal só era conseguido com o torcer as pontas das asas. Assim foi patenteado para o planador dos Wright, de 1902, que se saiba os únicos pilotos de planadores, até então, que compreenderam a necessidade de controle lateral. E foi usado em seus primeiros voos motorizados em 1903, quando decolavam com impulso obtido morro abaixo. E com o ganho de velocidade em relação ao ar pela calculada chegada de uma forte rajada, a qual, denunciada pelo movimento das árvores à distância, informava o momento de começar a descida ladeira abaixo. Para então o artefato encontrar a rajada quando estivesse no fim da ladeira, aumentando a velocidade do artefato em relação ao ar. Decolavam e logo pousavam, quando a energia do impulso se esgotava, visto que o motor de 12 hp era sabiamente impotente para continuar o voo. Curioso é que o comando do leme de direção, que muda a trajetória do voo e dos ailerons, era um só. Ultrapassado o ângulo ideal de inclinação das asas, o dispositivo dos Wright forçava inclinação adicional, enquanto houvesse curva para a direita ou para a esquerda sendo feita. Não tinha havido, por eles, na montagem do sistema, um entendimento do adequado papel que a inclinação das asas devia perfazer. Ainda bem que o avião deles, de 1903 – planador motorizado seria melhor denominação – era lento, menos de 40 km por hora. Nos curtos voos, impossível fazer grandes curvas. O chão chegava logo, antes de qualquer inclinação lateral perigosa. Deus protege os inocentes, entende-se.

Em 1906, chegava ao mundo o segundo sistema de inclinação das asas segundo o eixo longitudinal da aeronave: o usado, exceção aos helicópteros, nos 230.000 voos de 25 de julho – os ailerons. Foram acrescentados à versão de voo do avião de Santos Dumont, que decolara, com seus próprios meios, em outubro de 1906, tornado suficientemente potente após a troca do motor de 25 hp por outro de 50 hp. Há fotos dos ailerons na versão do 14bis que voou no dia 12 de novembro de 1906, ganhando um prêmio pelo voo de extensão superior a 200 metros, com decolagem por seus próprios meios. Há registro nos anais da Federação Aeronáutica Internacional descrevendo o feito e atribuindo o prêmio. Havia um comando para acionar os ailerons, outro para o leme de direção. Independentes, como devem ser. Cabia ao piloto acioná-los de forma correta. Foi um grande progresso, em duas direções. Na criação de um instrumento aplicável aos aviões de asas rígidas  (imagine-se a ação de fazer um enorme A380, para mais de 500 passageiros, torcer as pontinhas das asas) e na independência dos comandos dos ailerons e do leme de direção.

Os ailerons foram creditados a Santos-Dumont. Foram construídos e montados no avião de Santos Dumont por dois aeronautas, o próprio franco-brasileiro Santos Dumont e um seu concorrente em busca de prêmios oferecidos pelos primeiros voos, o francês Charles Voisin. O registro do primeiro voo homologado coloca a concepção do avião como de Santos Dumont. Assim entende-se que também a concepção dos ailerons tenha sido sua.

Os dois lemes laterais eram novos em todos os sentidos; não existiram no “14-Bis”, ao tempo da realização de 23 de outubro; não haviam existido em parte alguma de que se tivesse conhecimento na terra” (POLILLO, Raul, Santos Dumont Gênio, Cia Editora Nacional, 1950, p.226).

Mas a inovação vai além da concepção. É de quem transforma a ideia ou concepção em algo efetivamente usado com êxito. É de quem dirige a construção e montagem das novas peças. Ou de quem divide as iniciativas se divididas forem. Ou seja, a transformação da ideia em inovação pode ser mais propriamente atribuída à parceria Santos Dumont-Charles Voisin. É uma questão aqui levantada, cuja resposta deve repousar em estudos históricos.

Há publicações norte-americanas, ou culturalmente delas dependentes, que curiosamente atribuem  tal inovação a Glenn Curtiss, qual fez seu primeiro voo em 21 de maio de 1908, no avião White Wing, o primeiro construído usando-se ailerons, nos EUA:

One of the major contributions to flight progress during this period was the invention of ailerons, […] But Curtiss had more significant “firsts.”

Para os envoltos neste estrato cultural, o primeiro voo com ailerons na Europa pode ter sido em 1906. Mas o primeiro no mundo foi em 1908. Talvez alguém tenha declarado perda de validade do dia 12 de novembro, pelo longo tempo que decorreu. Lembra os ingleses, quando antes da Segunda Guerra Mundial, ainda donos de um império onde o sol não se punha. Dizem que os locutores de Londres, quando uma tempestade se abatia na área entre a Inglaterra e a França, impedindo a navegação no Canal da Mancha, diziam: “a Europa encontra-se isolada”. É caso de estudo na área de psicologia social?

 

Nota: O Prof. Tarcisio Patricio Araujo, que como Charles Voisin, ajudou nestas linhas, nega-se a que lhe seja expressa co-autoria. Numa interpretação do autor que ficou, talvez por ele não ser detentor de brevet. Meus agradecimentos e minha expressão de responsabilidade sobre o texto.