Allende, no dia do golpe

Allende, no dia do golpe

 

Jean Marc von der Weid, maio de 2023

Os dias do golpe.

Acordei com o ruído dos aviões da Força Aérea chilena, sobrevoando a cidade em rasantes. Pulei da cama e encontrei a Mari e o Luiz tão assustados quanto eu. “É o golpe”, dissemos quase que em coro. Duarte já tinha saído para o trabalho e ficamos preocupadíssimos, pois ele estava empregado na Contraloria General, cujo prédio ficava ao lado do palácio de La Moneda. Estava no olho do furacão. Resolvemos ir até lá, para ver o que o Allende estava fazendo para enfrentar os milicos e, se possível, nos juntarmos à resistência. Eu esperava uma convocação do presidente tal como no Tancaço: “vengan a la Moneda con lo que tengan”. Nós não tínhamos nada como armamento, mas sabíamos que o Duarte tinha uma pistola Walter que não encontramos. O Zé a levou com ele, não sei se por hábito ou por intuição.

De mãos abanando caminhamos em direção a Alameda e logo nos deparamos com um choque de carabineiros fechando a rua a umas cinco quadras do palácio. Podíamos ver, à distância, tropas do exército atirando contra o palácio. De onde estávamos não podíamos ver o La Moneda, que ficava um tanto recuado, mas devia haver resistência pois os soldados estavam buscando posições pouco expostas a tiros.

Os carabineiros ameaçavam quem chegava e mandavam todos se retirarem, indicando que a corporação da polícia do Chile tinha aderido ao golpe. Soubemos depois que houve resistência dentro dos quartéis que duraram horas e com muitos mortos e feridos. Nos retiramos para uma esquina de onde ficamos, junto com populares também desarmados, espiando discretamente. Quando o número dos nossos aumentava, os carabineiros avançavam e forçavam um recuo para a esquina seguinte. Na verdade, éramos poucos neste vai e vem por perto do bloqueio. As massas não tinham sido convocadas ou não tinham conseguido se deslocar, pois não havia transporte público funcionando. Ou porque perceberam que não teriam chance de fazer nada.

Um dos populares tinha um radinho de pilha e formou-se um grupinho escutando as transmissões das rádios progressistas. Foi assustador constatar que uma atrás da outra, elas foram sendo tiradas do ar. Mais e mais rádios proclamavam ameaças contra qualquer resistência, afirmando que as FFAA chilenas tinham decidido acabar com a “anarquia comunista” e afastar o presidente.

Neste ponto, a minha memória de elefante falha. Os tempos e locais se confundiram e não me lembro se ouvimos o bombardeio ali ou mais tarde, quando nos retiramos do Centro. Mas lembro que ouvimos em um radinho de um companheiro de infortúnio uma parte do discurso do Allende, irradiado por uma emissora que, depois soubemos, estava instalada no próprio palácio. Ouviam-se os tiros de metralhadora e explosões durante a irradiação. Não consigo separar o que ouvi naquele momento, do que ouvi depois, nas gravações que imortalizaram a despedida comovente de Allende. Mas ficou claro que o presidente dava o jogo por perdido e anunciava que morreria em combate, sem apelo ao povo para resistir, certamente por considerar que seria um massacre sem qualquer capacidade para reverter o golpe.

Decidimos que era hora de encontrar a Mari e planejar o que fazer. Ao chegarmos no prédio da Torre San Borja encontramos no elevador com três figuras: um baixinho ruivo e com um rosto vermelho e dois mulatos altos. Luiz e o ruivo se cumprimentaram com um aceno de cabeça e os três desceram em um andar abaixo do nosso. Luiz reagiu imediatamente: “este cara é o Piñeiro, chefe da G2 cubana, nos conhecemos em Havana, os outros devem ser seguranças dele”. A G2, a unidade de inteligência do governo cubano, era um alvo evidente para os golpistas e o Luiz achou que devíamos abandonar o nosso apartamento e buscar um lugar menos queimado para nos abrigarmos. Mari concordou com as nossas conclusões e foi arrumar uma malinha com coisas básicas. Enquanto isso eu e o Luiz discutíamos o que fazer. Eliminada a hipótese de nos juntarmos a uma resistência que parecia claramente fadada ao desastre, nos perguntamos se não era o caso de irmos para uma embaixada. Objetei, equivocadamente como verificamos depois, que os milicos cercariam as embaixadas para impedir a fuga dos que queriam prender. Raciocinamos como se estivéssemos no Brasil, com um regime militar instaurado e um aparato repressivo organizado. Não foi assim por algum tempo. Se as embaixadas estivessem cercadas, o que nos restava era tentar chegar na fronteira com a Argentina e, para isso, precisávamos de dinheiro. Eu tinha dólares, mas Luiz achou que era melhor lidar com moeda local para não chamar a atenção para nós. E fomos trocar dólares por escudos com um doleiro que ele conhecia e que morava por perto.

Ao tocarmos na porta do doleiro ainda se ouviam bombardeios e tiroteios e o dito cujo abriu uma portinhola e nos ameaçou com uma pistola. Luiz se identificou e disse que queria apenas trocar dólares e a porta abriu-se. O doleiro estava nervosíssimo (acho que ele temia que o fossemos assaltar) e fez a troca às pressas, sem discutir a taxa de câmbio, que estava perto dos 4500,00 escudos por dólar. Era uma burrada da parte dele, pois com o golpe era óbvio que esta taxa ia cair, como de fato caiu, em poucos dias, para um quarto deste valor. Troquei, por total falta de bom senso, cinco mil dólares, e saí com uma maleta de dinheiro contendo milhões de escudos. Recuperamos a Mari na porta do prédio e fomos caminhando na direção oposta ao centro. Ao passarmos por um outro prédio das Torres, vimos um grupo de soldados montando um cerco e logo ouvimos tiros e uma explosão. Saímos correndo e chegamos esbaforidos na Irrarrazabal. Soubemos depois que tinha sido uma operação de um comando militar para pegar o chefe da Investigaciones, o socialista Coco Paredes, morto resistindo à prisão. Foi na Irrarrazabal que a Mari lembrou que ali perto morava um casal de amigos deles, o Amarílio Vasconcelos e sua mulher Carmem. Ele era do PCdoB e tinha passado anos na China como responsável pelo programa em português irradiado para o Brasil pela rádio Pequim. Estava no Chile há um ano. Morava em um apartamento superior de um prédio de dois andares e nos recebeu sem discutir os riscos de abrigar “estranhos” nestas circunstâncias, pois o dono do apartamento morava no andar de baixo e era um momio de quatro costados, segundo o Amarílio.

Depois de nos instalarmos ficamos discutindo se haveria resistência em algum lugar do Chile e se todas as unidades das FFAA teriam aderido ao golpe. Amarílio dizia que o PCdoB tinha informações de que as unidades do sul do Chile, em Concepción, eram firmes apoiadoras de Allende e que elas poderiam formar uma base de resistência. Como se soube mais tarde era tudo o que os ingleses chamam de “wishfull thinking”. Vimos na televisão, pouco tempo depois (aqui também a memória se confunde em relação ao timing) o pronunciamento dos 4 oficiais comandantes, anunciando a derrubada do governo, a morte por suicídio de Allende e a ameaça de fuzilamento de quem fosse pego com armas. Era o primeiro dos “bandos”, palavra chilena para decretos militares. Também não lembro em qual dos bandos foi dada a ordem para todos os estrangeiros se apresentarem ao posto de carabineiros mais próximo, sob pena de fuzilamento no caso de desobediência. Mais tarde começaram a sair outros bandos com nomes de pessoas que deveriam se render imediatamente. Eram líderes da Unidade Popular, membros do governo e alguns estrangeiros, mas não me lembro quem eram.

O dia foi passando, mas os tiroteios não paravam. Caminhões e jipes do exército passavam para lá e para cá na Irrarrazabal, mas nenhum carro particular ou transporte público. Lá pelo meio da tarde veio a ordem do toque de recolher por tempo indeterminado. O nome em espanhol é toque de queda e soava sinistro em português. Estávamos presos naquele apartamento e rezando para o vizinho de baixo não ter notado a nossa presença na residência do Amarílio e para que não tivesse telefone para denunciar o próprio Amarílio.

A Carmem não estava bem de saúde e quase não saiu do seu quarto nos três dias do toque de recolher. Amarílio juntou-se a nós e passamos o tempo especulando sobre resistências, rotas de fuga e nos preocupando com amigos e amigas de quem nada sabíamos, em particular o Zé Duarte, que certamente estava dentro do cerco do La Moneda. Não me lembro se o Amarílio tinha telefone, mas a maior parte dos brasileiros conhecidos não tinha e ficamos isolados por três dias. 

Jantamos frugalmente, pois as reservas alimentares da Carmem eram restritas dada a prolongada crise de abastecimento provocada pelas greves dos caminhoneiros. Além disso, as bocas mais que dobraram e não sabíamos por quanto tempo ficaríamos impedidos de sair. Todo mundo foi dormir cedo, esgotados pelas emoções e pela tristeza com o fim de uma experiência de transformação social e de participação política muito além das que tínhamos vivido no Brasil. Lembro do Luiz dando boa noite e comentando baixinho: “esperemos que não seja um Jacarta”. Jacarta era o nome de batismo do golpe militar mais brutal daquela época, ocorrido na Indonésia em 1965 e que tinha matado 500 mil “comunistas”, a maioria militantes camponeses defendendo a reforma agrária. A direita chilena, nas semanas antes do golpe, pichou Santiago com esta ameaça sintética: “JACARTA!”.

Apesar de cansado, não conseguia dormir, instalado em um sofá na sala. Resolvi escrever as minhas sensações e os fatos do dia tanto para não esquecê-los como para passar o tempo. Até alta madrugada ouviam-se tiroteios em diferentes direções, uns cessando e outros começando. Parecia que uma espécie de guerrilha urbana estava em curso e eu torcia para que a malfadada tática de “defender os cordões industriais” tivesse sido abandonada. Não que eu achasse que esta aparente guerra de movimento pudesse ter sucesso, mas pelo menos permitiria um recuo dos combatentes quando ficasse evidente que não tinham chances. A defesa estática seria um massacre anunciado. Como foi e relatarei mais adiante. Lá pelas tantas ouvi um tiro isolado, vindo dos fundos do prédio. Fui até a cozinha e vi pela janela um mar de barracas baixas que se estendia na escuridão total. Se não me engano estávamos justo ao lado do mercado municipal, uma ampla área que, com o toque de queda, estava totalmente vazia. O tiro me pareceu de uma pistola de baixo calibre, um 32 possivelmente. Ao terceiro destes tiros veio uma reposta barulhenta de fuzis-metralhadoras e fez-se um silêncio por uma meia hora. Eu já dava o combatente solitário por morto quando ouvi outro tiro, um pouco mais distante no horizonte escuro do mercado. E novas rajadas furiosas. Estava em curso uma guerra singular. Luiz acordou com o barulho e veio se juntar a mim no meu posto de observação. Apelidamos o heroico combatente de “samurai louco”. Ele devia conhecer bem os meandros do mercado porque atirava uma ou duas vezes de um lugar e logo de outro mais longe ou mais perto de nós. Neste combate de sons, nunca vimos nem o samurai nem os soldados com quem ele trocava tiros. E torcíamos por ele a cada silêncio mais prolongado. A ação deste anônimo personagem era totalmente inconsequente do ponto de vista prático, mas acredito que se tratava de uma atitude de revolta pessoal, sem pretensões a nada mais do que vingar a derrota maior. O samurai calou a sua pistolinha quando começou a amanhecer, mas nas duas noites seguintes ele voltou a agir. Até hoje não sei se escapou, mas quero crer que sim.

Os dias seguintes foram longos e angustiantes. Víamos passar caminhões carregados de corpos de civis e ouvíamos os combates cada vez mais distantes, indicando que estavam concentrados nos cordões industriais e nas poblaciones. Não vimos tropas a pé nas nossas redondezas, o que confirmou a impressão de que o centro da cidade estava dominado, mas volta e meia explodiam tiroteios na direção da praça Itália. Cada dia mais raros. Para passar o tempo e por curiosidade, eu atraí o Amarílio para contar a sua experiência na China, onde ele chegou em 1964 e de onde saiu em 1972, se não me perdi nas datas, como costuma ocorrer. Talvez porque estivesse com a cabeça em outro lugar, lembro muito pouco destas conversas e olha que elas foram longas. O que ficou foram as descrições e comentários do Amarílio sobre a Revolução Cultural. Sob um discurso de aprovação deste processo, o que era a posição oficial do PCdoB, percebi nuances e reticências do meu interlocutor. Quero crer que ele, lá no fundo, era mais simpático ao derrubado secretário geral do PCC, Liu Chao Chi, do que ao presidente Mao. Falava muito bem do Chu En Lai, mas quem é que não admirava este superquadro da revolução chinesa? Também mencionou uma relação de amizade com Deng Hsiao Ping, outro dos expurgados na revolução cultural, mas que teve um retorno triunfante para assumir o poder depois da morte de Mao. Em 1972, criticar a revolução cultural era um crime de lesa pátria para um militante de um partido maoísta. Mas os dirigentes do PCdoB eram uma caixinha de surpresas e eu me lembro de ter ouvido o Arrudão (Diógenes de Arruda Câmara) defendendo o Lin Piao, mesmo depois dele ter tentado fugir da China e morrido em um desastre de avião na Mongólia.

O apartamento do Amarílio era um verdadeiro museu de artefatos chineses, muitos bastante antigos. Dos vários que vi o que mais me impressionou foi um baú que não tinha fechadura. A tampa era composta por peças de madeira finamente trabalhadas e que se encaixavam umas nas outras com vazios que permitiam deslocar as peças e ir mudando o desenho que a decorava. O baú se abria quando uma determinada combinação destas peças se encaixava e eu passei a segunda noite do toque de recolher tentando achar o desenho certo, enquanto ouvia os tiroteios do samurai louco no mercado municipal, que diziam aos milicos que nem tudo estava dominado. O segredo chinês ficou sem solução, por mais que eu tentasse reordenar as peças. Amarílio me contou que tinha ganho todas aquelas lindas e preciosíssimas peças de amigos chineses que, sabendo que iam ser atacados pela Guarda Vermelha, entregavam as suas melhores obras para salvá-las da destruição “cultural”. Amarílio ficou como curador destas maravilhas, na expectativa de que um dia os proprietários viriam buscá-las, mas isto não ocorreu e ele preferiu levar tudo com ele ao sair da China. Como representante de um “partido irmão” estrangeiro, Amarílio não foi ameaçado pela sanha dos guardas vermelhos, que tinham especial prazer na destruição da “arte burguesa”. E tudo isto se perdeu no golpe do Chile, quando o Amarílio teve que deixar o seu apartamento às pressas para se refugiar na embaixada Argentina. Quem terá se apossado daquele incrível baú?

Na manhã do terceiro dia do toque de queda saiu um novo bando suspendendo as restrições à circulação até as seis horas da tarde. Mari, Luiz e eu agradecemos a corajosa acolhida do Amarílio e da Carmem e saímos em seguida, não antes de cortarmos as barbas que usávamos e que eram sinônimo de simpatia comunista. As pessoas andavam apressadas nas ruas, sobretudo procurando comprar comida e remédios. Passamos por várias pessoas carregando malas, muitas com um ar de desespero de quem não tem para onde ir. Nós tínhamos as nossas malinhas e tínhamos para onde ir. Luiz e Mari foram para o apartamento onde a Márcia (Savaget), amiga desde os tempos do Teatro Universitário Carioca, presa no mesmo aparelho que eu e a Mari e também levada para a Ilha das Flores. Era também ex-companheira do Zé Duarte. Eu fui direto para a embaixada da Suíça, tentar conseguir asilo para os meus amigos. Ficamos de nos encontrar no apartamento da Márcia.

(continua)