Paulo Gustavo

Todo o mundo criado pelo ser humano e que se chama “mundo”, porque é precisamente criado, encontra-se, neste momento, como que entre aspas. O coronavírus, à semelhança de outras forças da natureza, nos torna a todos mero detalhe, seres reduzidos à sua insignificância original, desamparados ante uma força para a qual, ai de nós, não estamos minimamente preparados. Como disse em recente entrevista à Folha de S.Pauloo filósofo camaronês Achilles Mbembe, a pandemia “nos revela que a nossa história aqui na Terra não está garantida. Não há garantia de que vamos estar aqui para sempre”. A catástrofe imprevista radicaliza a circunstância de sermos contingentes. Uma invisível gotícula e pronto: estamos de partida. Como escreveu Freud, “[…] estamos todos excessivamente dispostos a esquecer que, na verdade, tudo que tem a ver com nossa vida é acaso, a começar por nossa origem no encontro do espermatozoide com o óvulo”. Pascal, neste momento, pouco nos adianta: se pelo pensamento abarcamos o universo, pelo contágio do vírus não somos mais que veículos e portadores de sofrimento e morte. A iminência da morte torna o mundo literalmente irrespirável.

O vírus revela e revolve as facetas e vicissitudes do humano. Alternam-se preces, egoísmos, solidariedade, hedonismos, prazeres (os sites de conteúdo adulto nada têm do que reclamar; como se sabe, nem à beira da morte nos abandona o princípio de prazer…), pseudorracionalismos (na verdade, o medo já lançou seus escuros óculos), impensáveis regressões e retrocessos, vaidades de última hora… Mas tudo, ressalte-se, como que provando que ainda somos humanos em face do inimigo não humano tão invisível quanto insidioso.

Como sugeriu Proust a certa altura de sua obra universal, na prática ninguém  leva a sério a ideia de que há uma eternidade a nos esperar. Todos se agarram desesperadamente à vida. A vida é que é “sagrada”, não a morte. Por mais que as preces subam aos céus, o que desce sobre nós é a implacável indiferença do cosmos. Uma indiferença que sempre está aí, mas que nos momentos trágicos se mostra em todo o seu despudor. Se muitos se dão as mãos, muitos outros apenas se desesperam ou se entregam a um egoísmo de classe ou de índole.

Uma pandemia rigorosamente inédita como a que vivemos nos coloca num limiar. Mas não sabemos o que será ultrapassado. Podemos ficar onde sempre estivemos. E também podemos criar um outro futuro. No momento, na neblina, seguimos tateando. Todas as informações técnicas que absorvemos enquanto meros cidadãos podem ser um inútil bálsamo se na prática não tivermos uma infraestrutura de saúde pública que suporte a devastação do vírus. A ingratidão (para não dizer o pouco caso) com a ciência nos cobra um altíssimo preço, no Brasil e no mundo. No momento, soa para todos uma voz mais alta e poderosa: a do coronavírus, o qual, nas palavras do já citado autor de “Necropolítica”,  deu a todos o poder democrático de matar…

Faltam líderes, falta equilíbrio emocional. Em suas memórias, Bertrand Russell, que foi um grande pacifista, se horroriza com a atitude pouco racional e emotiva de seus colegas acadêmicos em face da Primeira Guerra Mundial. Também os melhores intelectos sofrem seu apagão. Postos à prova, estressados, os seres humanos se deixam dominar pelas sugestões do medo, do inconsciente, de suas pulsões de morte. Porém há e não há o que fazer. E muitos já estão fazendo. A crise econômica que virá há de exigir criatividade e solidariedade. As classes desfavorecidas não são, como muita gente pensa, o problema, são parte essencial da solução. Assimetrias e desigualdades extremas esperam por novas políticas de inclusão. Uma política da morte precisa ser substituída, e logo, por uma política da vida.

Se pensar, como disse Heidegger, é “aproximar o distante”, o coronavírus com sua trágica presença nos ensina a pensar. Por isso, além de cientistas, médicos, economistas, advogados, técnicos e tantos outros profissionais, precisamos igualmente de novos pensadores e de novos conceitos. Sim, novos e criativos pensadores. Ou queremos continuar vivendo para pensar o mesmo? Para repetir lamentos e fórmulas gastas? Para ser agentes autômatos de uma necropolítica que insiste, em nome do Estado, na segregação e na morte? Enfim, se o vírus mata nosso corpo e nos torna em mais um número fatídico, talvez possa, por ironia, fecundar o nosso pensamento.

Paulo Gustavo