Eleições no Afeganistão (autor desconhecido).

 

O retrato fiscal do município-padrão no Brasil já é por demais conhecido: depende basicamente de transferências governamentais (FPM, ICMS e outras), gasta mais da metade das receitas com pessoal, tem irrisória receita própria (ISS, IPTU, etc.) e, tirando as despesas com pessoal, custeio e dívida, sobra muito pouco ou nada para os dispêndios com investimento.

Essa tragédia fiscal é acompanhada anualmente pelo conceituado Índice Firjan de Gestão Fiscal. No estudo deste ano (Firjan, outubro 2021), ressalta-se que uma em cada três cidades do Brasil não é capaz de gerar recursos próprios sequer para arcar com os custos da Câmara de Vereadores e da estrutura administrativa da Prefeitura. 

A grande maioria dessas cidades insolventes é de pequeno tamanho, algumas abaixo até de mil habitantes, resultado histórico de recorrentes iniciativas parlamentares no Congresso Nacional para criação, incorporação, fusão ou desmembramento de municípios. 

Do ponto de vista político-eleitoral algumas dessas pequenas cidades encerram realidades folclóricas. A tabela que acompanha o texto é elucidativa neste sentido. 

Enquanto na eleição proporcional de 2016 havia ocorrido apenas um caso no Brasil (Nova América da Colina, PR) em que todos os vereadores eleitos para a edilidade municipal eram de um mesmo partido (PSDB), em 2020 o número de municípios nessa situação subiu para 14, sendo 13 no Nordeste. 

Além de inusitada, tal configuração, gerada pelo fim das coligações, comporta grande distorção nas finalidades do Legislativo e suas relações com o Executivo. Basta dizer que em 12 dos 14 municípios os prefeitos eleitos eram do mesmo partido dos vereadores (nos dois únicos municípios em que esse fenômeno não ocorreu, os partidos estavam coligados na majoritária). Quer dizer, o papel de fiscalização da edilidade, além do seu mister de legislar, fica deveras comprometido. 

MUNICÍPIOS COM CÂMARAS UNIPARTIDÁRIAS – 2020
Estado Município Partido População
MA São Pedro dos Crentes PSL 4.700
PI Belém do Piauí MDB 3.607
PI Curral Novo do Piauí MDB 5.390
RN Frutuoso Gomes MDB 4.015
RN Viçosa Republicanos 1.731
PB Bom Sucesso DEM 4.937
PB Monte Horobe MDB 4.867
PB Ouro Velho DEM 3.052
PB São José do Sabugi DEM 4.153
PB Vista Serrana MDB 3.824
PE Quixabá Avante 6.796
AL Cacimbinhas MDB 10.920
SE São Miguel do Aleixo PSC 3.964
RS Barra do Rio Azul PSD 1.621
Fonte: elaboração própria com base em Thiago Matheus (4º Encontro da ANPOCS – 2021 e IBGE 2021 p/ população

Saliente-se, compondo esse painel de partido único à la China, que em Barra do Rio Azul e em Frutuoso Gomes só concorreram candidatos de um mesmo partido, PSD e MDB, respectivamente. 

Edilidades compostas por um partido só no Brasil, que tem 33 siglas oficializadas e 24 com representação na Câmara Federal, chamam à atenção pela sua atipicidade. Mas isso não é tudo. Vez por outra a mídia nacional repercute situações bizarras ocorridas nesses pequenos municípios, relacionadas às Câmaras de Vereadores, cujo funcionamento, repita-se, depende de aportes complementares externos à receita local para sua manutenção administrativa e financeira.

Os holofotes que deram notoriedade a esses casos devem-se ao simbolismo de resultados havidos em determinados pleitos: a eleição de parlamentares locais com a emblemática, e até por que não dizer mística, votação de apenas um sufrágio!

A professora Constância Melo de Carvalho, do pequeno município de Coivaras (3.842 habitantes), no Piauí, candidatou-se a vereadora na eleição de 2008 e se tornou suplente de uma coligação formada por quatro partidos: PP, PSDB, PTB, e o dela, o PMDB. Em 2011, uma vereadora eleita por essa aliança, Raimunda Costa Santos (PSDB), e todos os suplentes da coligação, à exceção de Constância, migraram para o PSB. 

Cassada a vereadora do PSDB por infidelidade partidária, e sendo a professora a única suplente da aliança, foi ela considerada apta a assumir vaga na edilidade coivarense com um único voto, o dela própria. 

No mesmo Estado do Piauí, no município de Pau D’Arco do Piauí (4.084 habitantes em 2021), no ocaso da legislatura, em 2008, Carmem Lucia Portela Santos (PSB), detentora de apenas um voto, tomou posse na Câmara Municipal após o vereador Miguel Nascimento, que fora eleito com 96 votos, ter sido cassado pela Justiça Eleitoral por infidelidade partidária, ao trocar o PSDB pelo PCdoB.

Aberta a vaga de Miguel, e tendo havido o falecimento do primeiro suplente, Reginaldo Souza Santos, a segunda suplente, Carmem Lúcia, tomou assento na edilidade pau-d’arquense como representante dela mesma, mas reclamando do TRE-PI sob a alegação de que deveria ter tido dois votos, o dela e o do marido, que garantiu ter votado nela (G1, 4/06/2008)

Cooptada pela tropa de arregimentação da cota eleitoral de gênero para concorrer a uma vaga na Câmara de Vereadores do município de Lajeado do Bugre (RS), que tinha à época 2.024 eleitores, a agricultora Juvina Camargo Duarte (PMDB) votou em si mesma e foi eleita em 2012 com este único voto. 

Fazendo parte da coligação PDT/PT/PTB/PMDB/PPS, que abocanhou seis das nove cadeiras da edilidade lajeadense, Juvina ficou na terceira suplência. O pmdebista Everaldo da Silva (122 votos) renunciou ao cargo para ser secretário do município, abrindo vaga para o primeiro suplente Odilon Bueno da Silva (108 votos), do PDT, que também preteriu o Legislativo e optou por assumir a pasta de Planejamento na prefeitura.

A segunda suplente, Solange dos Santos (PTB), que recebeu três votos, o dela mesma e os dos pais, julgou que não estava preparada para a nova função e desistiu do cargo (Jornal Zero Hora, 24/01/13), abrindo espaço para Juvina, a terceira suplente.

Tais excepcionais ocorrências não podem mais acontecer, todavia. A Lei 13.165 de 2015 instituiu cláusula de desempenho individual, condicionando o ingresso ao Parlamento apenas de candidatos que logrem votação mínima de 10% do quociente eleitoral (QE). 

Nesta esteira, a Lei 14.211, editada em 1º de outubro deste ano, impõe também um piso de votação mínima de 20% do QE para candidatos egressos de agremiações que, embora não tenham atingido o QE, poderiam ascender ao Parlamento, desde que tivessem votação mínima de 80% deste parâmetro.

Assim, conquanto as Câmaras dos Vereadores nesses municípios pequenos possam continuar sendo compostas por formações unipartidárias, fruto da realidade eleitoral do fim das coligações, pelo menos a extravagância de assunção às suas hostes de parlamentares representantes deles próprios, com apenas um voto, está impedida de ocorrer por dispositivos legais.

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Maurício Costa Romão, é Ph.D. em economia pela Universidade de Illinois, nos Estados Unidos. [email protected]