Lost in Translation, 2003. (autor não localizado).

 

O período entre o Natal e o Ano Novo se arrastou como se prenunciasse a chegada de uma guerra. Era paz demais para poder durar. Despertar em dois turnos tinha virado rotina. No primeiro, Armando urinava e voltava para a cama, evitando a reverberação da luz da sala e o contato com celular ou computador. Cumprido o segundo turno, que mal durava uma hora adicional, já não dava mais para dormir. Para debelar o sono restante, abria uma tela. Em minutos, a fatura do cansaço parecia estar liquidada e evaporar-se. Mas será? Provavelmente a fadiga iria decantar em algum vão do organismo para cobrar seu preço mais adiante – no mesmo dia ou ao longo da vida, em prestações suaves. No fundo, sentia o organismo cansado, mas punia o corpo pela lassidão da mente. Com tanta coisa que tinha a fazer, como podia se dispersar tanto? Com que direito geria frouxamente o tempo, na boca do alto verão, felizmente privado de calorões?

Desde que a conhecera, era a primeira vez que ela estava fora da cidade. Desde que ela passou a interessá-lo, ela nunca tinha ficado a um raio de dez quilômetros dele. Disso ele sentia falta; ela, provavelmente, bem menos. Sem buscar simetrias, preocupava-o avançar ao máximo no que os unia, e ignorar tenazmente o que podia separá-los. Mas não podia fazer isso com as distâncias físicas que, por uma vez na curta vida deles, agora pesavam. O mundo para ele passou a reconhecer o primado da geografia. Antes, não fazia diferença alguma que ele estivesse em Salvador e ela – ou qualquer pessoa – em Bratislava ou Antuérpia. Bastava estar no planeta e todos estavam em casa. Agora, a ida dela a Camaçari era uma lonjura. Bastava sabê-la na cancela do primeiro pedágio na direção da Praia do Forte para que batesse uma espécie de tristeza, de sensação de que trilhavam uma separação sem volta, como se a dor estivesse escrita.

No primeiro dia de ausência, ele não se obrigou a fazer grande coisa mesmo porque tinha uma eternidade pela frente. O desempenho medíocre não o preocupou porque, bem ou mal, estava às voltas com tarefas mais mecânicas, que também tinham a ver com o grande mundo, com o mundo que ele considerava seu aprisco natural. Mesmo porque, pensava, do que valia escrever livros se ele não podia tirar uma tarde para ajudar a equipe a enviá-los, somando esforços ao plantonista da editora? No dia seguinte, ademais, ele já era o próprio plantão da editora, que lhe confiara com cautelas algumas missões operacionais. Mas e depois? O que fazer com as saudades? E com a vontade transbordante de começar o ano com um espumante e uma mulher bronzeada, vestida de branco? Então ficou uma hora avaliando se a queria infeliz onde estivesse, sôfrega para voltar para Salvador. Ou se preferia que ela se divertisse por lá e regressasse inteira.

Então, tentou auscultar qualquer sensação súbita.