Martin, John – The Seventh Plague – 1823.

 

O fim do ano, perdoem-me os delicados, é feito de várias danações. Em dezembro, escorre mais rápida a areia de todas as ampulhetas. Até as areias digitais se esmeram em ser movediças. Dezembro é uma sufocação sem fim: corre-se pra lá, corre-se pra cá, desliza-se numa neve mais fria que a cadente e verdadeira neve do Hemisfério Norte. E haja implacáveis obrigações: os presentes, os perus, as luzes, que vão aumentar a conta no fim do mês, as mensagens cheias de lugares-comuns, as urgências dos procrastinadores, o álcool, que faz as indústrias de bebidas brindarem aos lucros… Os versejadores versejam, os cantores cantam mais do que nunca, os músicos bimbalham seus instrumentos. Cristo não nasceria com tanto som alto e tanta poesia ruim. Nem nascem bem os bebês logo embalados pelo barulho onipresente e pelos braços de pais e mães já cansados de segurar os celulares!

As danações se multiplicam e se repetem. Não se pode listar todas. Mas uma das mais queridas é a retrospectiva. Ou se curte uma boa retrospectiva ou o ano não tem fim! Uma vigorosa retrospectiva vai lembrar as mortes, os desastres, as calamidades, os assaltos aos cofres públicos…  

A retrospectiva é um espelho tardio e mudo. Não há mais como se mudar nada: nem as crises existenciais, nem as enchentes, nem os terremotos, nem os tiros de uma polícia bem (?) treinada, nem os acidentes espetaculares, nem a fome do mundo. A boa retrospectiva é acachapante, o que ela deseja é a nossa mudez, o nosso espanto abafado. Por favor, tirem as crianças da sala: retrospectiva é espetáculo para adultos. Retrospectiva é para quem toma omeprazol. Não se precisa dizer que retrospectiva é refluxo: um retorno ácido.

Neste passo, um demônio das sombras (seria redundante dizer: um ser que ama danações!) me lembra de falar da retrospectiva nacional. Tremo ao ouvir seu sussurro sádico. Por isso, falarei por alto… 2021 foi um dos piores anos da história pátria! Que danação! Nele consolidou-se a aliança de dois vírus: o governamental, que desgoverna e incentiva a morte, e o pandêmico vírus da Covid. Ora, isso já foi dito, observarão vocês, mas retrospectiva que se preza é repetição mesmo! Vivemos para ver um presidente rasgar a Constituição e continuar impune; lépido, mas não fagueiro, em cima dos seus cavalos de aço e muito bem defendido por seus sabujos jurídicos e parlamentares. Por falar em sabujos, o ano foi glorioso para eles: excederam-se no nobre sentimento de gratidão. Por outro lado, no ano que finda, também se excedeu a miséria social: os pobres, ainda mais pobres, abraçaram-se a ossos em filas de entranhada fome, compreendendo finalmente que o governo (osso duro de roer) só governa para os ricos. Também se deve registrar que, em 2021, a palavra “Brasil” virou “Auxílio”, pra não dizer que deixou de ser substantivo para virar adjetivo e… partido político: “União Brasil”, enfim um nome empolgante e belo para um país desunido! Taí um partido que já nasce “gigante pela própria natureza”!  Nada como usar bem as palavras certas. Fica a lição para escritores e jornalistas!

O ano que morre também viu morrer todos os dias uma de suas ilusões fatais: a terceira via. Morreu, mas ainda não foi enterrada. É uma insepulta a cativar bons e nobres espíritos. A terceira via não consegue sua própria via: seus afluentes bolsonaristas turvam suas sedutoras águas. Tudo isso, sabemos, é muito duro, mas uma boa e sólida retrospectiva não teme durezas; de resto no Brasil é sempre assim: sobra retrospectiva, falta perspectiva.

Agora, outro diabo me pergunta: “Paulo, nem uma palavra para a CPI da Covid?”. À semelhança de outras CPIs do passado, foi também chamada de “CPI do fim do mundo”. Mas o apocalipse virou letra morta. Ara, que coisa! (Por favor, nada de trocadilho com tão antiga interjeição!) O nosso adiado Nuremberg é sempre mais embaixo. Nossa Spandau é um sonho leve de uma noite febrilmente democrática.

Finalmente, numa retrospectiva de 2021, não se pode ocultar que o plano de rachar as instituições foi bem-sucedido. Claro que é um “work in progress”, mas não se deve esquecer seus grandes e progressivos avanços. Racha-se aqui, racha-se acolá, racha-se bem, nada que o latim não enobreça: “Gutta cavat lapidem”. O País, bem se sabe, tem larga “expertise” em tal seara, sobretudo em território fluminense. 

Pra concluir (com todos os diabos!), é de lembrarmos que a palavra do ano foi “vacina”… Errado! A palavra do ano foi “morte”. A palavra do ano foi “fome”. A palavra do ano foi “golpe”. Morra 2021! Viva 2022, com vacina contra a Covid para o Brasil e o mundo, com a vacina da democracia contra todas as falsas liberdades! Feliz ano novo!