História linda, divertida com alguma ironia que não é britânica, mas mineira. E a linguagem é sempre elegante, tem até poesia, não só ao recordar a tia, Henriqueta Lisboa, a primeira mulher a fazer parte da Academia Mineira de Letras. Poesia também quando Flavio Versiani, em nome dos colegas, entregou de presente de aniversário uma almofada pro magrela, para que não lhe doessem os ísquios quando datilografava muitas horas no seu emprego. Muito obrigada, Edmar Lisboa Bacha, pelas memórias da infância ao Plano Real.

Autobiografia do indivíduo inserido na história. Começa no Líbano, de onde chegaram os Bacha a Lambari e depois continua nessa cidadinha mineira, com a tradicional família Lisboa. Mais lembranças da infância já se situam em Belo Horizonte. E Maria de Jesus Lisboa Bacha é mesmo uma figura fora da curva se recebia e guardou cartas assim do filho de 22 anos, o caçula estudando numa universidade da Ivy League com toda aquela ambição de ser “o melhor”, ter nota “honors”.

Interessante tudo, e o conjunto. Chamaram a minha atenção observações sobre o “American way of life” (inclusive atitudes políticas mais comuns do americano médio), pois vivi nos Estados Unidos, e também a reconstrução do Departamento de Economia da UnB-Universidade de Brasília nos anos setenta, quando Bacha quis criar a Cambridge do Planalto (obviamente porque, ainda que por atalhos pouco ortodoxos, fiz parte dela). Como ilustração do processo de inchaço da máquina pública no Brasil, é impressionante o seu “momento” de risco de ser moído pela máquina estatal e pela maré avassaladora de políticos de todos os matizes pedindo cargos para apaniguados (ainda bem que não larguei a ONU para aceitar convite para trabalhar no IBGE).

Impressionam também a clareza dos propósitos e as reavaliações segundo mudavam circunstâncias (sem abdicar dos princípios e da coerência com sua visão do mundo), e, mais que tudo, o aprendizado no Plano Cruzado e no Plano Real, a honestidade intelectual no relato de como mudaram suas percepções de economia, o registro das muitas conversas e conversações com professores em Yale, com Diaz-Alejandro, Ignácio Rangel, Celso Furtado, Roberto Campos, José Serra e muitos outros, inclusive Mario Covas que o levou para o PSDB (pelo que entendi).

E, claro, a turma toda do Plano Real, os bastidores, quem fez o quê, até José Serra, Pedro Malan, Rubens Ricupero e Fernando Henrique Cardoso, as negociações com o Congresso, com governadores e prefeitos (e juristas) para transformar teoria em lei e Medida Provisória. E mostrando o quanto é essencial saber explicar ao povo em geral cada política pública. Extraio do livro a conclusão de que o Plano Real teve êxito porque foi mobilizado o apoio da população, e porque a liderança no governo teve capacidade de negociar com grupos de pressão, porque existe uma arte de negociar e fazer concessões sem se dobrar. Pois todas as medidas do Plano Real passaram pelo Congresso.

Só lendo, 238 páginas densas, claro que têm teoria e política econômica que são parte de sua vida, na ditadura e na democracia, mas são fáceis de ler, didáticas. Nada mais convincente que esse livro para mostrar que, para indivíduos ou equipes, é importante saber aprender com os erros do passado.

Só não sei dizer se mesmo alguém que não se entenda como economista vai achar, como eu, que se lê como um romance. Alguns dos personagens fazem parte do meu passado também, como José Serra, quase um colega de movimento estudantil, como Ignácio Rangel, sob cuja orientação trabalhei no ISEB preparando tabelas estatísticas, ou Celso Furtado que foi meu professor em curso da CEPAL e, como Antonio Calado, esteve trabalhando em Cambridge, Inglaterra, exilado, no tempo em que lá vivi (1973-1975) e, mais tarde, foi membro do CDP (United Nations Committee for Development Policy) nos meus tempos de ONU, décadas de oitenta e noventa. Naquela época ainda era Development Planning. Depois, quando Edmar Bacha foi membro do CDP, e logo a seguir Dionísio Dias Carneiro, foi modernizado para Development Programme. Acompanhar o debate no CDP era um pedaço divertido do meu trabalho na ONU, mesmo quando alguma discussão se estendia noite adentro. “No país dos contrastes”, além de análise histórica do presente, é obra literária cujo personagem central acompanho de longe, de maior ou menor distância, há meio século.

A breve Apresentação de Fernando Henrique Cardoso é perfeita. O espírito de equipe prevaleceu, de um Presidente que jamais se mostrou triunfalista nem pediu de ninguém obediência cega, só exigiu competência. Registro apenas as últimas frases da Apresentação de FHC, sobre o Plano Real: “Por tudo o que li neste livro e pelo que me recordo do que foi a experiência de controlar um processo inflacionário que se tornara agudo, as anotações de Edmar Bacha, por serem verídicas e provirem de quem realmente contribuiu para o êxito do Plano, são indispensáveis para avaliar as intenções e o que se conseguiu fazer naquela época. Nada a acrescentar, só agradecer ao autor pelo que fez e pelo que escreve.”

 

Edmar Lisboa Bacha, No País dos Contrastes: Memórias da Infância ao Plano Real, História Real, selo da Editora Intrínseca, Rio de Janeiro 2021.