Aracy de Carvalho – O Anjo de Hamburgo.

 

A série “Passaporte da Liberdade” é uma grande produção cinematográfica da Globo que presta uma justa homenagem a Aracy de Carvalho – O Anjo de Hamburgo – que, com coragem e generosidade, facilitou a fuga de centenas de judeus das garras do nazismo alemão. Entretanto, biografia e ficção se misturam perigosamente nos oito capítulos da narrativa da chefe da seção de passaportes do consulado brasileiro em Hamburgo e do seu futuro esposo, o cônsul adjunto João Guimarães Rosa. 

Em alguns capítulos, a série dá um grande susto no espectador e, no final, provoca uma grande decepção. Primeiros sustos ocorrem quando Aracy, em mais de uma cena, dá um tapa no rosto de um oficial da SS, que, loucamente apaixonado por ela, tenta seduzi-la e beijá-la. Quando vi a primeira tapa, tive receio da reação violenta do oficial, que poderia provocar uma reviravolta radical no enredo. Não houve, e ainda houve uma segunda tapa. Talvez, por estar apaixonado, mesmo um oficial nazista contenha seus impulsos violentos contra uma mulher de uma raça inferior.

A cena realmente aterrorizante mostra o mesmo oficial, bêbado e emocionalmente descontrolado por alguns segundos, apontando uma pistola para o rosto de Guimarães Rosa, seu rival na paixão por Aracy. Enciumado e revoltado depois que Guimarães Rosa impediu que ele estuprasse Aracy no sofá da sala, o nazista esteve na iminência de matar o futuro grande escritor brasileiro. Entrei em pânico. Por um segundo infinito, imaginei o roteirista perdendo a mão e permitindo que o oficial alemão matasse Guimarães Rosa, apagando, de um golpe, toda a produção literária do nosso brilhante escritor. A humanidade iria perder o prazer literário e intelectual de “Grande Sertão, Veredas” e eu apagaria da memória o amor reprimido do jagunço Riobaldo por Diadorim. Ainda bem que o roteirista teve o bom-senso e a generosidade de deter a mão diabólica do nazista, baixando a arma a uma ordem peremptória da Aracy. 

E a decepção. O andamento acelerado da série apresentou uma sucessão de atos de coragem e heroísmo do casal Aracy e João, incluindo a viagem dela de Hamburgo até a fronteira da Dinamarca, levando, escondido na mala do carro, um jovem judeu que o entrega ao movimento de resistência dinamarquês. Por isso, esperei ansioso que, no último capítulo, o casal invadisse a Chancelaria em Berlim, subisse até o gabinete de Hitler e metralhasse o perverso líder nazista. A guerra teria acabado três anos antes, o domínio nazista destruindo, poupando milhões de vidas e o patrimônio material das cidades, e salvando milhões de judeus nos campos de concentração, e outros milhões, que sequer seriam levados para as câmaras de gás. Infelizmente, neste aspecto, a história sufocou a licença poética de Mário Teixeira, o criativo roteirista da grandiosa série brilhantemente dirigida por Jaime Monjardim. Tivemos mais três anos de terror e destruição. 

A série é baseada no livro da historiadora Mônica Schpun intitulado “Justa – Aracy de Carvalho e o resgate de judeus: trocando a Alemanha nazista pelo Brasil” que recorreu a entrevistas e pesquisas documentais para mostrar a atuação de Aracy na facilitação de vistos para judeus alemães emigrarem para o Brasil. A ajuda que Aracy prestou aos judeus alemães no consulado brasileiro de Hamburgo, onde trabalhava como chefe da emissão de passaportes, foi reconhecida pelo Museu do Holocausto de Jerusalém que, em 1982, outorgou a ela o honroso título de “Justa entre as Nações”.  Mas, para além dos indiscutíveis méritos de Aracy de Carvalho, a série “Passaporte da Liberdade” abusa da liberdade ficcional, mostrando a brasileira e Guimarães Rosa em ousados e perigosos enfrentamentos da fúria nazista. 

A TV Globo anunciou a série como a “história real e extraordinária da brasileira que salvou centenas de vidas durante a Segunda Guerra Mundial”, segundo artigo de Rafael Barifouse na BBC News Brasil. Aparentemente, como resposta à crítica dos exageros heroicos do seriado por dois historiadores – Fábio Koifman e Rui Alonso – a série está sendo anunciada como uma “obra de ficção baseada em fatos reais”. Os historiadores reconhecem a valiosa ajuda que Aracy deu aos judeus alemães que pretendiam fugir do holocausto, mas lembram que, até 1941, antes da chamada Endlösung (solução final com extermínio dos judeus), o governo nazista queria mesmo que os judeus emigrassem e não se teria incomodado com a emissão de vistos do consulado brasileiro. Foi o governo brasileiro de Getúlio Vargas que definiu restrições e cotas à entrada de judeus no Brasil, que teriam sido contornadas por Aracy, embora, como mostra o seriado, o ministro brasileiro das relações exteriores, Oswaldo Aranha, tenha autorizado aumentos das cotas para imigração de judeus. Sem desconhecer que Aracy facilitou a saída dos judeus, Fábio Koifman chega a afirmar, na entrevista à BBC News Brasil, que “as evidências mostram que não havia heroína nenhuma nesta história[1]”. 

Nas condições dramáticas da crescente perseguição dos judeus na Alemanha nazista, é indiscutível e altamente louvável a contribuição de Aracy de Carvalho para a emigração dos judeus, salvando centenas deles do provável genocídio. Para louvar a coragem e o humanismo da jovem brasileira, não seria, absolutamente, necessário introduzir atos heroicos pouco verossímeis no roteiro. Na verdade, avançando da biografia para a ficção, a série incita as emoções do espectador, ao custo de perder credibilidade na “história real e extraordinária” do Anjo de Hamburgo.

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[1] Os autores fundamentam sua tese em artigo publicado no livro “Judeus no Brasil: História e historiografia” publicado em 2021.