Em artigo publicado nesta Revista Será? em 22 de dezembro último, intitulado “Os libertadores da América nas instituições: notas sobre os bolivarianos na ALADI”, o articulista Marcos Rehder Batista faz a defesa do sistema bolivariano da Venezuela, do modelo de integração regional da ALBA- Alianza Bolivariana para los Pueblos de Nuestra América, e de uma democracia alternativa plebiscitária. Na sua crítica ao neoliberalismo e ao Consenso de Washington, Marcos assume todo o discurso nacional-populista de Hugo Chavez e do seu seguidor, Nícolás Maduro, que utiliza o anti-imperialismo como uma fachada para esconder o autoritarismo, o estatismo e o protecionismo. Pelo respeito que tenho pelo competente e qualificado articulista desta Revista (com o qual, aliás, tenho muitas afinidades intelectuais), decidi comentar criticamente o que considero equívocos da análise e interpretação de Marcos Rehder no referido artigo.  

A ALBA que Marcos Rehder chama de “modelo alternativo para a integração da América Latina” é, na verdade, um insignificante e pitoresco aglomerado de sete pequenos países liderados pela Venezuela e por Cuba (além destes dois países, fazem parte da ALBA Nicarágua, Bolívia, Dominica, Antígua e Barbuda e São Vicente e Granadinas). Ele considera que esta organização de países, com viés protecionista e estatista, contribuiria para o aprimoramento institucional da ALADI-Associação Latino-americana de Integração. Se a ALADI, depois de tanto tempo, não avançou na direção de uma real integração comercial, até por conta da diversidade e instabilidade das políticas macroeconômicas dos países membros, não será a ALBA – principal expressão do bolivarianismo, segundo Rehder – que vai impulsionar esta integração. 

O bolivarianismo, afirma o articulista, seria o “resgate do espírito de independência das ex-colônias ao Sul do Novo Mundo”, ou, acrescenta, uma “revisão dos Libertadores da América enquanto referência, em um novo contexto, imersa no chamado Socialismo Moreno”. A não ser que o “novo contexto” sejam os anos da guerra fria e da polarização entre o imperialismo norte-americano e o imperialismo soviético, quando a esquerda latino-americana sonhava com uma ditadura do proletariado, o tal socialismo moreno, seja lá o que isso signifique, está totalmente deslocado no tempo e no espaço. O desmonte da economia da Venezuela, o desastre social de pobreza, o flagrante desrespeito aos direitos humanos, a emigração em larga escala (mais de cinco milhões já saíram do país), e o autoritarismo de Nícolás Maduro, com seus apelos patrióticos para esconder o fracasso, não são referência para nenhum país. 

O autoritarismo bolivariano consiste, segundo Marcos Rehder, em um conceito de democracia diferente do liberalismo, um sistema de consulta direta, plebiscitário e com base em comitês locais, o que significa, por último, o velho modelo do líder e do povo em relação direta, e por fora das instituições.  “Os países que melhor encarnam este viés – afirma Rehder – são, sem dúvida, Venezuela, Bolívia e, como bússola, a mais representativa inspiração da esquerda do continente, Cuba”. Democracia não parece um termo adequado para definir o sistema de governo da Venezuela (menos ainda de Cuba) com restrições à liberdade de imprensa, ampliação da Suprema Corte para conseguir maioria, perseguição e prisão de opositores políticos, manipulação do processo eleitoral. 

Ainda como forma de ressaltar a polarização política, o autor destaca que a ALBA teria “um número representativo de um espectro político sempre presente no continente, que se opõe frontalmente a ‘presentes’ que os setores mais reacionários nos deram, como Collor, Menén, Bolsonaro e Milei”. Pelo visto, no seu entendimento, a América Latina estaria dividida, e teria que escolher entre o bolivarianismo – mescla de autoritarismo,  protecionismo e estatismo da Venezuela e de Cuba – e “os setores mais reacionários”, tipo Bolsonaro. Ora, por mais que tenha simpatias pelo grupo da ALBA, o presidente Lula da Silva não está tentando implantar no Brasil nenhum desses fundamentos bolivarianos. Além do mais, nos países da América Latina, especialmente no Brasil, existem fortes tendências políticas de centro e centro-esquerda que rejeitam o bolsonarismo e fogem do bolivarianismo. 

Na crítica à visão da CEPAL, de integração regional, Marcos Rehder defende a “integração cooperacionista” do bolivarianismo, que se orienta pela complementaridade e integração das atualmente chamadas cadeias de valor. Tal modelo de integração partiria do entendimento de que a dependência da América Latina decorre da baixa produtividade do trabalho. Na verdade, o bolivarianismo defende o protecionismo, todo o contrário da integração às cadeias globais de valor. A proposta apresentada por Rehder não difere em nada do diagnóstico – baixa produtividade – e da estratégia – busca de integração nas cadeias globais de valor – da CEPAL. E de quase todos os países e tendências políticas que percebem que neste século XXI o mundo mudou radicalmente, e que não é viável nem desejável apostar no protecionismo e na substituição de importações como estratégia de desenvolvimento. O bolivarianismo é uma tentativa arcaica de retomada de velhas teses da esquerda, que estão deslocadas do contexto histórico. E fracassou completamente na sua principal experiência, levando à decadência a Venezuela.