Uma anedota pernambucana conta que o já falecido professor Arlindo Pontual, ao dar suas aulas na Faculdade de Engenharia da UFPE, costumava perguntar aos alunos qual seria o melhor amigo do Homem. Ao ouvir as respostas dos estudantes, ele refutava brincando que o melhor amigo do Homem era o concreto armado, pois “Os engenheiros fazem muita besteira com ele, mas ele não desaba”… O gracejo do mestre nos lembra o quanto no Brasil estamos sujeitos a riscos negligenciados ou até criados pelos próprios profissionais. A história dos nossos grandes desastres, antigos e recentes, está aí para provar.
As pessoas, independentemente de classe social, em face das calamidades, preferem acreditar em forças mágicas e num destino implacável, preestabelecido. Ocorre que o poder político espertamente se aproveita disso. As primeiras palavras das nossas autoridades diante de uma catástrofe qualquer são sempre estas: “Foi uma fatalidade”. E pacientemente engolimos essa “fatalidade”, como se tudo pudesse ser subtraído a uma análise racional e não se devesse imputar responsabilidades.
O imaginário popular taxa de “mau agouro” e de “mau gosto” qualquer preocupação com o perigo e a morte. A fé ingênua de muitos e a má-fé de alguns dão-se as mãos em sinistro conúbio. Quem se preocupa com riscos vira um chato, só pode estar carregado de energia negativa… Portanto, nada de investir em muito planejamento, nada de pensar em ameaças patentes ou latentes. Enfim, os riscos são minimizados, não mitigados ou levados em consideração. Mas, como moscas persistentes, eles voejam em nosso entorno. Para uma defesa futura, temos a palavra mágica: “fatalidade”. Para os chatos que eventualmente se preocupam com riscos, temos um rótulo sob medida: “paranoicos”.
Guimarães Rosa glosou o tema em conto magistral do seu livro “Primeiras Estórias”. Nessa pequena obra-prima, de título “Fatalidade”, com história passada na área rural, narrada por uma testemunha dos acontecimentos, o genial escritor mineiro ironiza o vezo brasileiro de batizar os fatos negativos e consequentes de “fatalidade”.
Cometamos agora o crime de lesa-literatura ao tentar resumir o texto rosiano! O amigo do narrador, delegado de polícia e dado a poeta, estudos e sentenças, recebe de um morador das vizinhanças, Zé Centeralfe, um pedido de providência para conter um certo Herculinão (Um não Hércules? Um falso Hércules?), que estava dando em cima de sua mulher, olhava para ela “com olho quente”, e que ademais era um desordeiro e valentão. O vexado morador do campo se justifica: “Aqui é cidade, diz-se que um pode puxar pelos seus direitos. Sou pobre, no particular. Mas eu quero é a lei…”. O homenzinho se vai… O delegado poeta, dado a filósofo, diz para si mesmo, referindo-se a Herculinão: “Sigamos o nosso carecido Aquiles”. Ao encontrar o desordeiro, faz fogo e o mata, mas o leitor logo é informado de que a cena é mais complexa, e nela estava o próprio Zé Centeralfe, que, sugere-se, também atirou: “Três, porém, haviam tirado arma, e dois tiros tinham-se ouvido? Só o Herculinão não teve tempo. Com outra bala no coração. Homem lento”. O delegado poeta resume: “’Tudo não é escrito e previsto? Hoje, o deste homem. Os gregos…’ Disse: — ‘Resistência à prisão, constatada…’”.
Dessa forma, Guimarães Rosa conecta o potencial filosófico do tema a uma sutil crítica social. A procura vã pela lei cede à prática, corriqueira em sociedades anômicas, de se fazer uma imediata justiça pelas próprias mãos, o que, por sua vez, é embrulhado no papel retórico e encobridor das palavras: “Resistência à prisão constatada…”. Rosa parece nos dizer, nas entrelinhas, que uma das missões da Literatura é também denunciar o quanto as palavras podem ser manipuladas pelo e para o negacionismo militante. Não por acaso, o finalzinho do conto cita mais uma bravata do opinioso delegado: “Esta nossa Terra é inabitada. Prova-se, isto…”.
Mas eis que nós, brasileiros, estamos evoluindo. Apesar do mau gosto estilístico de se usar “o mesmo” na frase do aviso, ficamos atentos para ver se o elevador se encontra alinhado ao nosso andar! Por falar em elevador (um dos meios mais seguros de transporte!), também sabemos quantas pessoas, no máximo, um elevador pode comportar, não obstante a temerária opinião daqueles que dizem que “sempre cabe mais um”!… Por outro lado, só com alguma dificuldade descobrimos onde ficam as escadas e saídas de emergência (muitas vezes nem existem, como no caso da Boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul). Já vemos nos shoppings armários de vidro transparente com mangueiras para casos de incêndio (houve um tempo, imaginem!, em que eram escondidas!). Infelizmente nos postos de gasolina ainda se fuma muito… O próprio cigarro só teve seus perigos explicitamente anunciados após uma longa batalha política… Riscos, riscos e riscos a nos espreitarem. Por sua vez, as estatísticas não param de anunciar a “fatalidade” de morrerem negros e pobres em confronto com a polícia. Deve ser, como no evocado conto de Rosa, “Resistência à prisão constatada”! Mais uma “fatalidade” num país em que se fala que “um pode puxar pelos seus direitos”, mas que, na realidade como na ficção, falta com a justiça e a verdade.
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