Homem gaveta – Salvador Dali.

 

Mudar de endereço é penoso, mas também pedagógico. Obriga-nos a um punhado de rituais. Listo-os como me ocorrem: explorar a nova vizinhança; incorporar hábitos bons e esquecidos em detrimento dos ruins e arraigados; palmilhar a geografia de um entorno inédito, o que envolve padarias, frutarias e bancas de jornal; lidar com o comichão de remexer nas gavetas porque é hora de nos desvencilharmos da papelada, ou, pelo menos, de organizá-la para a nova etapa. Foi revirando uma caixa de sapato que revisitei dias remotos. Senão, vejamos alguns dos documentos que salvei do lixo.

Da lavra de J.M.Coetzee, o escritor sul-africano: “Algumas pessoas têm a aguda necessidade de ter uma casa, mais que outras pessoas. O espaço ideal de um caçador, por exemplo, deve ter uma área quilométrica, ao passo que para o morador da cidade bastam dois ou três quartos. Finalmente algumas pessoas nunca se sentem totalmente em casa neste mundo”. Ao lado, outro recorte multiuso: “Um viajante deve ter o olho de um falcão para enxergar longe; as orelhas de um burro para ouvir o mais discreto cochicho; o rosto de um macaco para estar pronto para rir; a boca de um leitão para comer de tudo; os ombros de um camelo para carregar pacientemente todos os fardos e as pernas de um cervo para fugir dos perigos”.

Ainda na mesma caixa encontrei um comprovante de depósito bancário. No verso, a autenticação mecânica em favor de Tatiana em 17 de novembro de 2005. O depositante – o querido Rubinho Valença, pelo jeito, falecido mês passado – ali rascunhou os seguintes versos: “A hora não sobeja, os minutos / A hora guardiã desses segundos / A hora e através, dos nossos mundos / A hora tão senhora doutros mundos”. Só pelo achado a mudança já valeu. Em outra tirinha, leio com zelo a relação das quinze palavras que nossos estudantes mais erram em ditados: ansioso, assepsia, assessoria, azia, companhia, concepção, escassez, extorsão, fugaz, hediondo, premissas, seiscentos, sexagésimo, subsídio e superstição. Errei alguma coisa?

No dia em que concluí a mudança, Quiroga, o astrólogo do Estadão, previu dias bons para nós os arianos: “Enquanto algumas coisas terminam, outras estão no início. Considere este momento da sua vida um marco que separa o passado do futuro. Abençoe tudo que aconteceu até aqui, dê as boas-vindas ao que virá a acontecer”. Na mesma data, li os conselhos de Elmore Leonard sobre escrever: “a) Nunca comece um livro com o clima; b) Evite prólogos; c) Nunca use um verbo além de ‘disse’ para transmitir o diálogo; d) Nunca use um advérbio para modificar o verbo ‘disse’; e) Mantenha seus pontos de exclamação sob controle; f) Nunca use um ‘de repente’; g) Use dialetos e gírias locais com parcimônia; h) evite descrições detalhadas; i) Não use muitos detalhes para descrever lugares e coisas; j) Tente deixar de fora as partes que o leitor costuma pular”. Parece fácil, mas só parece.

Por fim, resgato o papelzinho e traduzo os pré-requisitos para ser um bolsista Rhodes, em Oxford (Bill Clinton foi um): “Desenvoltura literária e escolástica; energia para usar a pleno seus talentos; amor pela verdade; coragem pessoal; devoção às tarefas; empatia para com os mais fracos e vocação para protegê-los; gentileza, altruísmo e companheirismo; força moral de caráter; instintos para liderar e devotar interesses genuíno pelos seres humanos”. Que beleza que isso ainda exista no mundo. Deveria ser a desiderata de todo executivo e poderia estar afixado na porta dos caçadores de talentos. Muito candidato voltaria da porta; mas muitos outros entrariam com o melhor sorriso.