a) É novembro. A temperatura em Kiev fica em torno de zero grau nesse alto outono. Estou amando a Ucrânia. Toda manhã, saio do hotel Bratislava, pego o metrô e desço na Khreshchatyk, a principal estação. No trajeto, ninguém sorri, ninguém conversa, muitos leem, uns poucos consultam o celular, ninguém se encara. Mas como me afeiçoo facilmente às rotinas de curta duração, eu adoro esse momento do dia. À noite, a vizinhança é lúgubre. Mas tem um bar de música klezmer e uns malucos , bêbados, fazem acrobacias como no frevo.

b) Como é comum na Rússia, o que mais temos aqui na Ucrânia é máquina para sacar dinheiro, salões de narguilé e restaurante de sushi. Imprudente, fiz um saque um pouco maior numa avenida de movimento. Com as cédulas no bolso, olhei o reflexo do vidro. Dois rapazes me olhavam e cochichavam. Culpa minha! Simulei outra operação. Teatral, levei as mãos à cabeça e abandonei o caixa como se estivesse desesperado, sob impacto.

c) Um homem aflito por más surpresas financeiras fica desinteressante até para os batedores de carteira. Desci as escadarias do metrô e caminhei pelos subterrâneos até a praça Maidan, onde só então voltei à tona. Comprei a uma babushka um gorro amarelo para confundir os rapazes, caso eles me identificassem. Pouco a pouco, me senti livre para caminhar, sempre parando em cafés, livrarias e pequenas galerias, onde a conversa é boa.

d) Parece que todo mundo adora sushi. A qualquer hora do dia tem gente devorando aqueles barcos enormes, cheios de pecinhas coloridas. Abusei dos temakis de ovas de salmão – ikura – que são saborosos e baratos. A praga do cream cheese chegou aqui com força. Os salões de narguilé parecem reunir os ociosos e mal encarados. Todo mundo ali parece estar planejando armar alguma trapaça. Gosto do ar oriental que o narguilé dá à paisagem.

e) É difícil ver tanta mulher bonita quanto em Kiev. Contrariamente às russas, que perdem as linhas muito cedo, aqui elas se mantêm esbeltas e bem proporcionadas até os 60, se duvidar. As pernas podem ser longas e como todas gostam muito de botas e saltos, o fêmur se espicha e o tórax vem lá em cima, nas alturas. Muitas usam jaquetas de pele curtinhas, deixando ver um colo bronzeado nas praias da Tailândia ou da Turquia.

f) Outro alvo invariável das caminhadas é o Mercado da Bessarábia onde me abasteço das comidinhas que gosto de ter no quarto para snacks fora de hora: esturjão defumado, ovas, pão de grãos, blinis, smetana, salame e vodka. Nunca vi tanta marca de vodka. Todas são baratíssimas e alguns rótulos são lindos, de design clean. Embalagem de vodka é sempre seca e sem cor. Combina com a bebida. No mercado, vi uma coisa fenomenal.

g) Parado diante dos estandes, fiquei mais de hora observando as vendedoras. São matronas de bochechas vermelhas, encorpadas como camponesas, que ficam estáticas, só reagindo a um pedido do cliente. São como matrioskas com seus lenços de cabeça amarrados no pescoço. Há um elemento artificial em tanta ordem e asseio. Não há iniciativa de feirante naquelas mulheres. Agem como se trabalhassem para o governo, com salário garantido. Não entendo vendedores resignados.

h) Várias vezes fui engolido pelas bandeiras. Eles têm uma das mais lindas bandeiras do mundo, mas nunca vi tantas. A singeleza do desenho – a metade baixa é amarela e a superior é azul, e simbolizam, respectivamente, o céu afagando os trigais – de alguma forma reflete as dicotomias internas. Assim, daqui até a fronteira oeste – Romênia, Moldávia, Polônia, Hungria e Eslováquia -, prevalece a vontade de aderir à Comunidade Europeia.

i) Vi muitos jovens abraçados ao lado de velhotes encapotados, cantando hinos patrióticos no pórtico das igrejas. É difícil esquecer a política e pensar, afinal, que estou na terra de Gogol, de Sholem Aleichem e de Clarice Lispector. Há uma linha demarcatória invisível que cinde o país. Ela vem de Chernobyl, na fronteira bielo-russa, e vai até Odessa, no Mar Negro. Dali para o leste, o pertencimento emocional é ortodoxo e oriental.

j) Peguei um passaporte novo na Embaixada. O outro já estava ficando sem página em branco. Agora tenho um documento novo válido até 2018, para quando fizer meus 60 anos. Vou de trem para Lviv amanhã. Por causa do passaporte, não fui a Chernobyl, que está aberta para visitação. É linda a sinagoga Brodsky. Tem alguma coisa trágica nesse país, mas quando se ouve a música klezmer na birosca perto do hotel, a gente esquece isso.