A ficção brasileira vem-se arriscando por caminhos tortuosos e pouco iluminados. Já enfrentei o tema em várias ocasiões passadas. Assim fiz nos ensaios “Marília e seu Pássaro Secreto” (Correio das Artes, dezembro de 2021), “De Romancistas, Brasileiros e Russos” (Revista “Será?”, agosto de 2017), e, mais remotamente, “Em Favor da Literatura Instrumental” (Correio das Artes, novembro de 1977), este incluído no meu livro “Coco de Roda – Treze Ensaios Iluministas” (Edição FUNDARPE-CEPE, 1996). A minha tese, que vou apenas resumir agora, é que, esgotadas as fortes motivações sociais que impregnaram os romances dos anos 30 do século passado, a nossa ficção mergulhou no intimismo dos dramas urbanos, sem perspectivas alentadoras nem claras lições de vida. Exceções feitas, naturalmente, a Ariano, Guimarães Rosa, Mário Palmério, José Cândido de Carvalho, um ou outro que ainda tenha encontrado inspiração em questões regionais e sociais.
Particularmente agressivo fui (ainda moço, e propício à indignação, naqueles idos de 1977) em relação ao ficcionista francês, M. Robbe Grillet, que foi apresentado aqui em João Pessoa como um arauto do “nouveau roman”, e andou pontificando em nossa terra com a proposta de “uma literatura objeto, não alienada a finalidades externas”, fazendo afirmações como “a forma é a mensagem”, ou “escritor autêntico é aquele que nada tem a dizer, romance autêntico é aquele nada significa”. A isto contrapus apenas a afirmação de Ferreira Gullar: “Só tem sentido fazer literatura quando for para mudar as coisas”.
Faço estas considerações para tentar explicar por que as memórias e biografias têm tido tão boa acolhida do público nos dias atuais. Cansados do esforço em decifrar os enigmas ficcionais, em tatear na obscuridade das almas humanas perquiridas, em afundar no pessimismo dos “heróis problemáticos” dos romances intimistas de hoje, é nas memórias e nas biografias que os leitores vão buscar lições de vida, modelos a seguir ou a rejeitar, verdades ocultas a descobrir.
Tomo como referência o livro recém lançado por Ramalho Leite, político de “longo curso”, que deve ser lido agora na condição atual de membro e presidente da Academia Paraibana de Letras. Para mim, sem arroubos laudatórios, foi um encontro agradável, surpreendente em um livro de político. Sobretudo porque ele segue a primeira regra, a meu juízo, para o bom êxito das memórias: não falar apenas do autor, mas também do seu entorno, do seu contexto, despindo o manto de herói e abrigando-se nas vestes da humildade. Acrescente-se a isso uma precondição fundamental: a sinceridade.
O memorialista teve longa carreira de político, passando por vários partidos, da situação ou da oposição, até encerrá-la, segundo sua modesta e quase surpreendente avaliação, pelo mais inquestionável dos impeachments: a falta de votos. Foi prefeito municipal, deputado estadual, deputado federal, diretor do Banco do Nordeste, apoiou vários governadores, com quem manteve relações cordiais, mesmo mudando de palanque, em razão de circunstâncias diversas. O que, considerando a atual conjuntura, não significa nada: os partidos brasileiros, há muito, não apresentam diferenciação programática ou ideológica. E ele tem a elegância de não fazer juízo negativo de nenhum dos seus chefes, mesmo daqueles que se tornaram adversários, ou tiveram momentos de desgraça.
Ramalho Leite reconhece o erro de ter apoiado, no primeiro momento, o golpe militar de 1964, e explica como passou à oposição, em mais uma demonstração de honestidade. E segue com a narrativa de sua aventura política, matizada, cheia de altos e baixos, sempre em estilo simples e tom empático, com leves toques de humor. Todas as personalidades da política paraibana mais recente, mescladas à vida do narrador, desfilam aos nossos olhos, sem auréolas nem deformações. Eu que, mesmo à distância, sempre acompanhei os eventos políticos de minha terra, pude mergulhar em detalhes pitorescos e divertidos. E posso assim reafirmar: atualmente, leio biografias com mais gosto do que romances.
Enfim, para os jovens que se dispõem ainda a encarar a carreira política, promissora em alguns casos, frustrante em tantos outros, o nosso memorialista, em seu livro de título tão feliz, deixa um recado. Está no capítulo 35, com leve toque de amargura, mas também de resignação: “O político não tem amigos, tem instantes de amizade”.
Faltou-me apenas registrar: o título do livro é “ERA O QUE TINHA A DIZER”