Hoje já é sábado. Meia hora do sábado. Um vento frio entra pela janela. Olho a noite coberta pelo silêncio casto da rua. O Capibaribe segue sossegado no leito de sono fluvial. Não consigo dormir. Sou um vigilante da Ucrânia. Não um militante de Kiev. E não durmo.

Hoje é o décimo dia da guerra. Mais de cem mil refugiados deixaram cidades ucranianas. Além de quinhentos ucranianos mortos. Uma nação sacrificada. Entre depoimentos, uma jovem, na estação ferroviária, expôs toda a vulnerabilidade de um povo. Ela disse:

– Nós estamos nos sentindo indefesos. Sem proteção.

Três fatos no noticiário noturno me marcaram, deixaram marcas em meu coração: um piano, tiros em jornalistas ingleses e ursinhos de pelúcia.

O piano estava numa rodoviária da Polônia. Colocada por um polonês que teclava o instrumento. E, ao tocá-lo, abria os braços para os que fugiam da guerra. E chegavam ao berço de Chopin. Nenhuma forma seria mais acolhedora, a quem foge da guerra, do que música. Um piano. Tão autenticamente polonês. E, naquele momento, tão merecidamente ucraniano. Uma ucraniana, mesmo cansada, indormida, sentou-se ao piano. E fez parceria com o pianista. Talvez esta viesse a ser a cena mais verdadeiramente oposta ao cenário bélico que separa pessoas.

O segundo fato foram tiros disparados contra jornalistas. Todos sabem a ira que autocratas têm da imprensa. Pavor. Porque veículo de imprensa é a devassa da devassidão política. É exalar o mau cheiro da corrupção. Por isso, autocratas, ocultos na sombra do poder, buscam desesperadamente silenciar jornais. Cortando a importação de papel. Fechando canais de tv. Bloqueando plataformas de internet. Substituindo informação por ódio. E notícia por fake news.

A reportagem mostrou ataque sofrido por jornalistas em rua de Kiev. Estavam dentro de um carro. Receberam os primeiros balaços. Um deles ferido. Ao gritarem que eram jornalistas, a fuzilaria aumentou. Como se fosse senha para eliminação. Este é o apreço, modelado em chumbo, ofertado pela autocracia à liberdade.

O terceiro fato foram ursinhos de pelúcia. Jovens polonesas, com ursinhos nas mãos, aguardavam crianças ucranianas. Quando estas desciam dos ônibus, eram presenteadas com os bichinhos. Quem é pai ou avô, e já comprou ursinhos para filhos e netos, sabe o embevecimento que cerca o abraço infantil.

O olhar de alegria dos pequenos, brincando com seus novos companheiros, é uma página de Saint Exupéry. Um poema de Cecília Meireles. Uma tela de Renoir. Um tratado de solidariedade humana. Uma carta ao futuro.

Comecei o texto com o título: Deixei minha vida em casa. Ouvi esta frase de refugiada, com uma filhinha no colo, sentada no chão, rosto caído. Mas, com olhos vivos e uma voz que era resignação e luta, ao mesmo tempo. Dirigiu-se ao repórter:

– Vim só com muda de roupa e filha. O resto ficou. Deixei minha vida em casa.