Itália em disputa de Giuseppe Vacca lançado entre nós recentemente é um livro magistral. Em 303 páginas Vacca analisa 35 anos da vida política italiana depois de ultrapassado o fascismo e a devastadora guerra que arrasou seu território. É sobretudo um excepcional livro de História Política que seguramente será muito útil aos estudiosos desse campo da História em nosso país, sem falarmos no leitor interessado em compreender os desafios da contemporaneidade.
O subtítulo do livro “comunistas e democratas-cristãos no longo pós-guerra (1943-1978)”, dá a indicação explícita de que não se trata específica e cronologicamente de um estudo sobre a I República, mas sobre as conexões e os embates políticos que compõem o pós-guerra na Itália: um momento de reconstrução do país e de luta em torno dos critérios e possibilidades da modernização da sociedade italiana. Essa luta implicou o estabelecimento da República e em seguida de uma nova Constituição para o país. Essa grande epopeia fez nascer e se estabelecerem duas grandes forças políticas no país: a Democracia-Cristã e o Partido Comunista Italiano (PCI).
Esses são os dois atores centrais do livro de Vacca. A contraposição e o diálogo entre eles, a dura luta não apenas no Parlamento, mas também nas ruas e praças. Para além do confronto, a concordância entre ambos em diversos momentos e temas pontuais; embates e consensos que produziram como resultado a ampliação dos direitos dos trabalhadores, a unidade do país e a sua inserção no contexto europeu. Duas forças políticas populares, enraizadas no território, mas opostas ideologicamente. Elas iriam, surpreendentemente, produzir o consenso e as profundas mudanças culturais em torno do que viria a ser a Itália nas mais de três décadas do pós-guerra.
Duas forças políticas que, sem excluírem as outras de menor peso – dentre elas o Partido Socialista Italiano (PSI) –, souberam avançar a modernização e alterar as estruturas do país, bem como a sensibilidade social e cultural dos italianos. Foram esses dois partidos, a DC inspirada no “personalismo cristão” e o PCI no “internacionalismo proletário”, que de fato se assumiriam, cada um a seu modo, a função ou o papel de um “partido da Nação”, conectados com os ditames da nova ordem mundial do pós-guerra. Para um país dividido e conflituoso como a Itália, isso tinha um significado extraordinário, que acabaria se perdendo anos mais tarde.
Em torno desses dois atores, os diversos capítulos do livro asseveram que a hegemonia político-cultural desse processo esteve com a Democracia-Cristã, e que o PCI jamais conseguiu destroná-la e, com isso, vencer as eleições e governar o país. A conjuntura internacional da Guerra Fria e a hegemonia católica impediam essa perspectiva e exigiam o realismo dos dirigentes comunistas. Isso ficou claríssimo em 1948, a primeira eleição para o novo Parlamento, na qual os comunistas se tornaram o segundo partido mais votado, levando uma política de classe contra classe, o que era impraticável para se assumir o governo naquela conjuntura.
De acordo com Vacca, o que dava sustentação ao sistema político que se montou com a Constituição republicana de 1948 não era a oposição entre direita e esquerda, mas uma dupla legitimação que envolvia aquelas duas forças políticas: o antifascismo, base do “campo democrático”, no qual estavam comprometidos tanto a DC quanto o PCI, e o anticomunismo, imprescindível para governar no período da Guerra Fria. Essa tese interpretativa explica efetivamente a capacidade hegemônica da DC e dá sentido ao predomínio desse partido nesse “longo pós-guerra”. Por essa razão nunca houve realmente a possibilidade de alternância na formação dos governos italianos desse período. Essa impossibilidade, dentre outros fatores, gerou o que mais tarde foi caracterizado como uma “democracia bloqueada”.
O livro de Vacca visa iluminar esse complexo período, examinando duas culturas políticas que plasmaram a sociedade civil italiana e determinaram a qualidade das suas classes dirigentes. O autor divide essas três décadas em duas partes: a reconstrução e o milagre econômico e, sucessivamente, o período no qual “se manifestou uma fragilidade orgânica do país e se puseram as premissas do subsequente declínio”. Vacca sintetiza essa passagem da seguinte forma:
“Na fase ascendente da República, DC e PCI foram duas forças políticas originais no panorama europeu, conscientes da própria função histórica e capazes de regular seus conflitos e valorizar sua complementaridade, tendo uma visão mais ou menos adequada da estrutura do mundo. O declínio da nação italiana deita raízes exatamente no desgaste, por causa da mudança do tempo, dessas capacidades” (p.16).
As razões fundamentais do declínio são sintetizadas em torno da não percepção da mudança do tempo histórico. Para Vacca, líderes importantes como Aldo Moro e Enrico Berlinguer, embora tivessem intuído “a aproximação do fim do longo pós-guerra”, tentando dar ou renovar a coesão do país por meio da convergência das duas maiores forças políticas (DC e PCI, o “compromisso storico”), “não tiveram percepção adequada da ‘grande transformação’ e não conseguiram evitar que a Itália fosse considerada um foco de instabilidade, tanto a Oeste quanto a Leste” (p.18). E assim foi: a classe política desse glorioso período não sobreviveu ao fim da Guerra Fria e a emergência do Mercado Comum Europeu.
A partir dos anos 1990 e nas duas primeiras décadas do século XXI, tanto a regulação política interna quanto a adequação internacional, em função do fim da Guerra Fria, da emergência da globalização, etc., a Itália perde a capacidade de atualização ao contexto europeu: “as culturas políticas que ocupam a cena divergem daquelas dos principais países europeus, mais ainda do que nas décadas precedentes” (p.17).
Na leitura de Vacca, um país que não consegue formar “novas e robustas culturas políticas” acaba por se iludir com a ideia de que está participando ou construindo algo novo e, sem consciência, assume as mesmas faces ou máscaras da velha commedia dell’arte.
Para nós, brasileiros, o livro de Vacca é útil sob diversos aspectos, além daqueles mencionados acima. Metodologicamente, poderíamos mobilizá-lo para se pensar a fase ascendente do nosso processo de democratização, que gradativamente teve coincidência com as mesmas “mudanças do tempo” mencionadas por Vacca. Nessa fase de ascensão democrática, conquistamos uma nova Constituição e a nossa classe dirigente soube enfrentar os diversos desafios políticos e econômicos que se seguiram: debelar a inflação e se preparar para uma integração ativa na globalização emergente. Os governos de FHC significaram o ápice dessa ascensão, que permaneceu inercialmente no primeiro governo de Lula.
Depois disso, a nossa trajetória é reconhecidamente descendente no plano político, com a ausência clara de uma nova classe dirigente e a deriva do país, até a desastrosa emergência da extrema-direita, com a vitória de Jair Bolsonaro em 2018. Como escrevi em outro artigo, a “perda de consenso em relação à ordem democrática, acarretando um recorrente antagonismo político, polarizações sucessivas e diversas, que perigosamente comprometem a unidade da Nação e suas perspectivas democráticas” parece ter se tornado a tônica da vida política brasileira nos últimos tempos.
O livro de Vacca poderia ser, assim, um ponto de inspiração para que se desenvolvesse uma pesquisa sobre esses dois momentos na democratização brasileira, o ascendente e o descendente. Mas seria importante ressaltar que, ao contrário da Itália, no Brasil, dois atores, supostamente próximos, em disputa antagonística geraram uma polarização destrutiva e não colaborativa. Esse “Brasil em disputa” dificilmente poderia olhar de maneira positiva para o passado, como faz Vacca, a despeito de todas as observações críticas. Contudo, estariam, Itália e Brasil, irmanados num presente que somente o “pessimismo da razão” aparece aos nossos olhos como uma dimensão ainda produtiva.
A Itália em disputa – comunistas e democratas-cristãos no longo pós-guerra (1943-1978), de Giuseppe Vacca, FAP/Unicamp, 2021, 303p., tradução de Luiz Sérgio Henriques.
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