Chegados ao Brasil, escravos, os negros não estavam condenados ao silêncio. Cantavam. Tocavam. Flautas e atabaques. Dançavam. Principalmente a umbigada. Tida pelos colonos como uma indecência.
Brancos e mulatos de camadas baixas das cidades ingressavam nos batuques dos negros. Num casamento de percussão, coreografia e canto responsorial africano crioulo. Com viola.
No século 19, a paganizaçao do batuque mesclou-se em lundu. E, depois, com a energia do elemento angolano, configurou-se o samba. Sutil e gradualmente, há um processo negociado de branquização das danças africanas.
Daí, os batuques dividem-se em três ramos: os africanos e descendentes; os negros livres, crioulos; e os brancos da classe média baixa. Misturando ritmos e coreografias, cultivaram a batucada, o lundu, o coco, o jongo, o tambor de crioula. Transformaram o semba em samba.
No processo de aculturação, passa pela etapa de samba de partido alto. Alçado às nuvens nos morros cariocas. Desfilando nas escolas de samba. Imortalizado no talento de Pixingunha, Donga, Ismael Silva, Nelson Cavaquinho, Ary Barroso. Navegando o rio de Paulinho da Viola. Até chegar ao porto pagode, de Zeca Pagodinho.
Do outro lado da América, os negros norte-americanos entoavam sua música. Em Chicago e em New Orleans. Envolvidos nos cantos religiosos de grupos gospel. Seu forte eram os metais. Que desenhavam no ar verdadeiras arquiteturas musicais. Com Louis Armstrong, Miles Davis e Coltrane. Depois, vieram os pianos: Bill Evans, Chick Corea, Errol Garner, Oscar Peterson.
Entre os intérpretes vocais, dois ases se destacaram entre reis e rainhas: Ella Fitzgerald e Nat King Cole. Ella não apenas interpretava. Ela testemunhava a vida. Trazia para as canções as dores de seu drama pessoal. E as envolvia em operetas de feitio quase clássico. Por sua vez, Nat King Cole colocava no seu timbre um ar cálido, cativante, que fascinava seus ouvintes. Foi capaz de brilhar na mesma época em que cantavam Frank Sinatra e Tony Bennett. São ambos, Ella e Nat, expressões que ergueram, na fímbria de legítimas árias, monumentos à voz humana.
A América negra somada em duas músicas: samba e jazz. Distantes, mas juntos. Reconhecidos um no outro, no altar da bossa nova. Na criação oceânica de dois gênios: João Gilberto e Tom Jobim.
A apresentação, pela primeira vez nos Estados Unidos, da bossa nova, no Carnegie Hall, no início dos 60, foi flerte natural. A mesma inspiração negra, fervendo na geologia comum das duas Américas, desabrocha na musicalidade convergente da musa de Ipanema.
Quais são suas interseções? Duas: a pauta moderna de músicas que souberam cantar seus países, suas culturas, seus horizontes, seus sabiás. E o espaço que ambos, jazz e samba, souberam dar à improvisação, à imaginação, à invenção.
Prezado Luiz Otávio. Acrescentaria o nosso Choro, o Chorinho, também com forte raiz africana. Tal como o jazz, os instrumentos conversam uns com os outros em belas improvisações. Está no lado de cá do mapa do Brasil, ao norte do Rio São Francisco, um marco, um divisor de águas, na história do Choro brasileiro: Canhoto da Paraíba. Nascido em Princesa Isabel, fez história em Pernambuco e ficou conhecido em um famoso encontro no Rio de Janeiro com Jacó do Bandolim. Desse encontro nasceu o LP “Um violão brasileiro tocado pelo avesso”, em junho de 1995. Em próxima crônica voltarei a esse assunto.