Metanoia: ”Mudança essencial  de pensamento ou de caráter” (1ª acepção, segundo o Dicionário Houaiss) 

Confesso aos poucos amigos que me leem: tenho inveja do meu velho amigo CRISTOVAM BUARQUE. Não pelos postos que ocupou, todos altamente dignificantes – consultor do BID, professor e reitor da Universidade de Brasília, governador do Distrito Federal, senador da República, além de escritor e pensador de trânsito internacional – mas pelas oportunidades que tais posições lhe proporcionaram de conhecer o mundo e aprender com ele.  É o que está demonstrado no seu livro mais recente: “O Mundo é uma Escola – o que aprendi em viagens”, que me atrevo a comentar.  Assumindo que, uma vez temperada pela admiração, a inveja, enquadrada nos sete pecados capitais, pode ser convertida em pecado apenas venial.

Consolo-me também ao lembrar dos casos de Machado de Assis e Ariano Suassuna.  Estes, segundo a lição de Tolstói, conseguiram ser universais cantando as suas aldeias: o bruxo do Cosme Velho nunca saiu do Rio de Janeiro, e o paraibano desterrado viveu quase exclusivamente entre o Recife, terra do seu exílio, e sua querência, a Vila Real da Ribeira do Taperoá.

Também aprendi com viagens, embora em escala infinitamente menor. Quando líder estudantil, estive quatro vezes no Exterior: Leste Europeu, Finlândia, Canadá, Uruguai. Mas sempre em congressos estudantis, ao lado de companheiros igualmente engajados em lutas políticas, com visão limitada pelas circunstâncias. Muitos anos depois, particularmente, estive, como andarilho, no Peru (Machu Picchu) e na Patagônia Chilena (Torres del Paine), nestes casos vivendo a experiência de Saint-Exupéry, de conhecer melhor a Mãe Terra medindo-me com os obstáculos que ela nos oferece. Deles deixei testemunho em crônicas. Mas agora reconheço, com humildade, que mais temos a aprender com gente, com nossos semelhantes, mundo afora, como soube fazer Cristovam.

A lista de personalidades que meu amigo conheceu, com quem conviveu e soube aprender, é enorme: Julius Nyerere, primeiro presidente da Tanzânia, Boutros Boutros Galli, estadista egípcio, Muhamad Yunus, banqueiro bengalês prêmio Nobel da paz, o político americano Robert Mc Namara, o rei do Bahrein, o escritor colombiano Gabriel García Marquez, o cientista Carl Sagan, o escritor de ficção cientifica Arthur Clarke, Koffi Annan, secretário geral da ONU, o milionário George Soros, o primeiro ministro português Mário Soares, Francis Fukuyama, George Bush, Jimmy Carter, Fidel Castro, Hugo Chavez, Bob Kennedy, o economista americano Leo Huberman, o escritor peruano Mário Vargas Llosa, os pensadores franceses Edgar Morin e Stéphane Hessel, o príncipe Hassan Ibn Talal, da Jordânia.  Para completar, os brasileiros Darcy Ribeiro, antropólogo, Ricardo Brennand, Armínio Fraga, economista, Cândido Mendes, Paulo Freire, Rubens Ricupero, embaixador, Clodomir Morais, consultor da FAO, o poeta Manoel de Barros, o fotógrafo de fama internacional Sebastião Salgado. De todos Cristovam soube colher lições de vida, opiniões, experiências.

Em suas vilegiaturas globais, surpreendeu-se na Islândia, a terra do gelo como o próprio nome indica, ao saber que o taxista que o serviu era primo do presidente da República. Em Botswana, a antiga Bechuanalândia, colônia britânica no sul da África, escandalizou-se ao ler no jornal um aviso do Governo para a contratação de um carrasco. De toda essa diversidade de impressões, ficou-lhe o melhor. E o que o ajudou a consolidar as suas convicções.

As 85 crônicas – ou artigos – que compõem o livro estão cheias de reflexões, voltadas, principalmente, para os grandes temas que o preocupam: o aumento crescente, em escala mundial, da desigualdade entre os indivíduos, a degradação da natureza pela ação predatória da “civilização”, a “apartação” entre milionários e miseráveis, e, diante de quadro tão sombrio, como agir, politicamente, para contrastá-lo. Em seu esforço de conceituação desta realidade tão complexa, nosso autor concebe tantas expressões, que chega a inserir, no final do livro, um glossário explicativo delas.  Todas nos parecem criativas, com ressalva mínima, a meu juízo pessoal, de que falarei adiante.

Por breves momentos, faz algumas concessões ao misticismo, como ao imaginar que um toque na suposta cruz de Cristo, em Israel, o fez resistir melhor a uma pneumonia, ou admitir vida inteligente fora do nosso planeta.  Como racionalista assumido, e leitor do livro “Rare Earth – Why Complex Life is Uncommon in the Universe”, dos cientistas americanos Peter Ward e Donald Brownlee, não o acompanho nessas convicções. Mas faço coro entusiástico à sua obstinada luta pela educação de base federalizada, de igual nível para todas as crianças brasileiras, sejam elas filhas de políticos, de milionários ou de trabalhadores. Para isso, ele já elaborou programas detalhados, quantificados, com estimativas de tempo e projetos de leis, estes engavetados, como era de se esperar. E por isso, foi defenestrado do Ministério da Educação, como bem sabem os brasileiros de boa fé. Se levado a termo, seu programa teria sido a verdadeira revolução, a sonhada metanoia para as esquerdas, num momento em que as propostas de transformação da sociedade pela via econômica, produzindo riqueza para depois tentar distribuí-la, caritativamente, se desvanecem.

Também como racionalista, que apenas conserva de suas crenças uma renitente fé no futuro da humanidade, questiono o tom sombrio, apocalíptico, de suas previsões, quando antevê, diante da “apartação” crescente entre homens miseráveis e abastados, em escala mundial, a formação de duas espécies de humanos: o “neo-homo-sapiens” e o “neo-neandertalis”. Est modus in rebus.  Também ponho dúvidas na sua atitude de jogar a culpa das iniquidades da civilização moderna em todos nós, indistintamente, sem distinguir os que lutam, mesmo ingloriamente, contra elas. Embora reconhecendo que o tom de escândalo adotado em suas muitas conferências sobre bolsa-escola, mundo afora, é o que lhe confere notoriedade, e assim favorece a causa.

O peso dessa responsabilidade atribuída a todos nós é tal que, além de nos provocar uma mauvaise conscience sem remédio, pode nos levar à ânsia por ações precipitadas, resultando em terríveis desastres.  Alguns exemplos: a revolução cultural, com o nobre propósito de combater a “acomodação burguesa” na China, a bem intencionada diretriz de Pol Pot, de devolver ao campo a população subempregada das cidades cambojanas, e, mais remotamente, a revolução francesa do século XIX, ao pôr termo aos privilégios absurdos dos nobres. Não há mais clima para transformações tão traumáticas nesta velha humanidade.

Mas não resta dúvida de que a educação, no modelo em que a concebe Cristovam, é a última e única bandeira a ser levantada pelas esquerdas, quando já se descarta o controle estatal dos meios de produção, pela ineficiência que tem gerado, mundialmente: igualdade de oportunidades de formação para todos, sem imposição de igualdade de rendas, caminhos abertos para a prosperidade de qualquer pessoa, limitados apenas pelo “teto ecológico” e pelo “piso social” de que nos fala o autor.

Mas, sobre o seu instigante livro, devo confessar também um pequeno remorso. Antes de publicá-lo, o amigo me remeteu os originais, pedindo-me que os revisasse. Já havia feito coisa semelhante com trabalhos menores, e eu criticara alguns livros seus. Mas este me chegou por meio eletrônico, e são mais de trezentas páginas. A leitura em tela de computador é, para mim, um sacrifício enorme, e não pude atendê-lo.  Emiti apenas, a seu pedido, uma observação sobre o texto da página 272, em que ele, motivado pela travessia dos Andes, ao comparar as economias do Chile e as da Argentina e do Brasil, parece atribuir o êxito da primeira e os insucessos das outras aos assessores econômicos, os “Chicago boys” de um lado, os “cepalinos” do outro. Ponderei que o planejamento econômico, como técnica a serviço da política, não pode ser o responsável pelas opções levianas dos chefes de Estado. 

Enfim, o livro saiu com vários lapsos, não apenas de digitação, como letras trocadas ou em falta: um caso de texto repetido, erros de sintaxe, anacolutos… Possivelmente eu os teria evitado, suprindo a falha dos seus editores. E também contestaria, data venia, um dos seus numerosos neologismos, designativo das elites de ricaços: hélites. A palavra tem raiz grega, mas nos chegou através do francês: élite. Não há fundamento etimológico para a novidade, e os conceitos de elite intelectual e elite financeira já estão bem consolidados.

Compareci ao lançamento do livro no Recife, e recebi do autor, no meu exemplar, a seguinte dedicatória: “Para Clemente, companheiro de caminhadas mais fundamentais do que estas. Abraço.”  Não, amigo, desta vez o pecado foi seu, pela generosidade. Nada pode comparar-se à riquíssima experiência que o seu último livro nos transmite. Só nos cabe aderir à sua causa, e lutar pelo avanço civilizatório que você propugna, no qual ponho fé.