Imunidades parlamentares, usando palavras de Georges Burdeau (Tratado de Direito Político), são “privilégios que garantem o livre exercício do mandato”. E correspondem à proteção contra atos estranhos às atividades parlamentares, como crimes comuns (“inviolabilidade”); ou ao cumprimento específico de suas funções (“irresponsabilidade”), como o direito de dar “opiniões, palavras e votos” – que está, na Constituição de 1988 (art. 53), com a mesma redação das anteriores (a de 1946, art. 44; a de 1967, art. 34).
Um direito indissociável da independência que deve ter, o parlamentar, no exercício do mandato. Em paridade com o que ocorre em todos os outros países, como Espanha (art. 71 da Constituição), França (art. 26), Itália (art. 68), Japão (art. 51). Única exceção é Alemanha (art. 46), onde parlamentares respondem sempre que ocorra “injúria infamante”. Em quase todo lugar, um direito amplíssimo. Com algumas curiosidades, como Inglaterra e Estados Unidos. Em que o mesmo direito que tem cada parlamentar de dizer o que quiser, sem ser processado, tem também qualquer cidadão para falar do poder, se estiver em local público e com os pés fora do chão – devendo por isso falar sobre bancos, caixões, em prosaicos lenços ou mesmo apenas dando pulos.
Ocorre que, na Ditadura, o Governo Militar estabeleceu um limite. Não podia falar em censura, torturas, mortes, nem contra a Segurança Nacional. E quem decide o que seria uma ameaça à dita Segurança Nacional? O próprio Governo Militar, claro. Em resumo, parlamentares não eram livres para dar opiniões. Simples assim.
Problema é o risco de acontecer, hoje, o mesmo. A regra do limite continua; só que, em vez do Governo Militar como polícia, agora é o Supremo. E o tema são atos por ele considerados “antidemocráticos”. Semana passada, foi o senador Kajuru, que definiu certo Vanderlan Cardoso como “idiota, inútil, pateta bilionário, senador turista”. Como, aos olhos do Supremo, as ofensas estão fora da imunidade, o Senador pode acabar preso.
O risco desse tipo de posição é, em tese, qualquer declaração poder ser considerada como fala sem proteção da imunidade parlamentar. Qualquer uma. Antes, o Governo Militar. Agora, o Supremo. Antes, a Segurança Nacional. Agora, o que o Supremo quiser. Igual. Exatamente igual. Isso é bom ou ruim para a Democracia?, eis a questão.
Com todo o respeito, discordo do meu amigo Zé Paulinho (o tratamento vai por conta da amizade, mas também em homenagem ao pai, figura honorável, em muitos aspectos). E como estudante de latim, de muitos anos, recorro a essa língua imperecível, para as minhas ponderações.
“Summum jus, summa injuria”. Não há direitos absolutos. A imunidade parlamentar não tem o dom de revogar as leis que definem dos crimes contra a honra: injúria, calúnia, difamação. Certamente não é o que desejavam os legisladores constituintes, e cabe aqui a interpretação teleológica da norma, não a meramente literal. Há que respeitar-se a “mens legis”.
Em confirmação desta tese, recorro ao método da “reductio ad absurdum”. Imaginemos um parlamentar plantar-se em frente ao STF e descarregar uma série de impropérios contra os seus ministros: doestos, achincalhes, ameaças de violências, todo o elenco de agressões verbais que a lei penal condena e pune. Podemos justificar tal atitude em nome da imunidade parlamentar? Do livre exercício do seu mandato? É aí que vemos que tais princípios “comportam temperamentos”, como muita coisa da ciência jurídica. “Est modus in rebus”.
Não me parece o caso, “venia concessa”, de comparar a atitude do STF de hoje, reagindo às agressões, com a repressão da Ditadura Militar. Se o dispositivo legal exigir interpretação para a sua observância, tal interpretação, em última instância, só poderá caber à Suprema Corte, nunca a militares, como os que tomaram o poder em 1964. Portanto, a situação não é “simples assim”. Não é a mesma coisa, obviamente. E o STF já firmou posição a respeito, consolidando a doutrina.
Em defesa da democracia e do respeito entre os três poderes da nação.
Para terminar como comecei, saudando o meu amigo jurista, agora reconhecido também como escritor renomado pela Academia Brasileira de Letras:
“Interpretatio illa summenda est quae vitetur absurdum”.
Corrigindo, na 5ª linha: “leis que definem OS crimes”…