Diz o povo que o remédio para um doido é outro à porta. Nesse sentido, nunca o Brasil esteve tão necessitado de doidos, mas doidos com aspas, doidos mansos para enfrentar os doidos que fazem mal ao País e que, no momento, estão com a faca e o queijo na mão, senão com armas e pesada munição. Com certeza, os desequilibrados cruéis e despóticos precisam ser enquadrados pelas linhas da Constituição, que são muito mais de quatro, ao contrário do que dizem os pescadores de águas turvas, já prontos para fisgarem uma “democracia à brasileira”, a qual, nos idos do regime militar, foi rechaçada com humor por Sobral Pinto ao dizer que só conhecia… peru à brasileira!
Talvez o acima citado dito popular tenha passado pela genial cabeça de Guimarães Rosa ao escrever o conto “Os irmãos Dagobé”, do livro “Primeiras Estórias”. Nas mãos de um escritor medíocre, o tema só teria lugares-comuns; nas mãos de Rosa, rendeu uma de suas mais ricas páginas, sendo que, quase a cada linha, temos o emblema de esmerada criação literária. Como se sabe, Rosa estava atento ao “canto e à plumagem das palavras”. Mas dizer assim ainda é pouco. Talvez seja preciso relembrar que, com suas criações morfossintáticas e metafóricas, com seus neologismos de fazer Joyce morrer de inveja, Rosa queria mesmo era ir além do real, surpreender a poesia, formar um espírito crítico, questionar os círculos de giz de prender peru. Naturalmente, no referido conto, ele foi muito além do que apenas sugere o dito popular.
Lembro desse conto para, como já obliquamente dito no início, falar da conjuntura política nacional, não no sentido limitado ou convencional do termo, mas para refletir sobre o momento psicológico que a sociedade atravessa. “Os irmãos Dagobé” pode nos trazer esperança em meio ao medo e tensionamento que vivemos. É como se o Brasil rural e anacrônico, que serve de fundo à “estória” rosiana, pudesse nos dar a alegria de uma liberação. Numa hora de espíritos armados, inclusive literalmente, essa página literária sugere desarmar nossos espíritos e nos fazer esperar o inesperado: “A gente vê o inesperado”, como diz o narrador rosiano. De repente, abre-se a caixa-preta do medo: uma libertação.
A ação que move toda a cena rural do enredo ficou para trás, chegamos, os leitores, “in media res” e somos informados de que “Estava-se no velório de Damastor Dagobé, o mais velho dos quatro irmãos, absolutamente facínoras”. Um “pobre”, “pacífico” e “honesto” Liojorge, para espanto do povoado, matara o cruel valentão. O inimaginável acontecera. E voltará a acontecer. Enquanto o velório avança, as convencionais vozes do medo têm como certa a vingança dos irmãos sobreviventes. “Depois do cemitério, sim, pegavam o Liojorge, com ele terminavam.”; “Saboreavam já o sangrar”. Via-se que os temíveis irmãos confabulavam.
Eis que Rosa, ou melhor, o narrador participante, nos lança à primeira reversão de expectativa: “[…] estúrdia proposição! A qual era: que o Liojorge [que matara em legítima defesa] se oferecia para ajudar a carregar o caixão… Ouviu-se bem? Um doido — e as três feras loucas: o que já havia, não bastava?”. Pois bem, o agora mais velho dos irmãos atende à demanda do assassino, desde que depois do caixão fechado. O narrador, em detalhes, pontua os gestos de ódio dos terríveis irmãos. O Liojorge dirige-se aos três com uma saudação cristã: “Com Jesus!”. Os irmãos, quase indiferentes. Já no cemitério, os circunstantes temem pelo pior: “O silêncio se torcia”. O narrador-testemunha desconstrói a expectativa geral: “Levou a mão ao cinturão? Não. A gente era que assim previa, a falsa noção do gesto”. E, enfim, após o sepultamento, eis o inesperado: “Moço [diz um dos irmãos Dagobé para o Liojorge], o senhor vá, se recolha. Sucede que o meu saudoso Irmão é que era um diabo de danado…”. O mais velho, então, agradece aos presentes e anuncia que os irmãos deixarão o povoado para morar numa cidade grande.
Ao longo do texto rosiano, perpassa uma visão de que há uma suposta unidade no mal, assim como sua inevitabilidade. Mas essa, no fundo, é a visão mais simplista, feita de uma previsibilidade que fecha as portas a qualquer esperança. Em contrapartida, forçando a emergência de forças ainda adormecidas, houve o gesto improvável (e cristão!) do Liojorge, que, por sua vez, desencadeia o inusitado comportamento dos Dagobé. Vale lembrar que no tecido literário rosiano não há lugar demarcado nem para o bem nem para o mal absolutos, embora este possa guardar lugar para aquele. Ao fechamento dos horizontes, Rosa propõe, pela palavra, a intervenção que cura e restaura o desregramento causado pela “hybris”. Talvez seja de uma cura assim que o Brasil esteja precisando numa hora em que alguns, à semelhança dos irmãos Dagobé, assustam com sua crueldade e seu poder de opressão.
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