Augusto dos Anjos, pintura de Flávio Tavares.

Augusto dos Anjos, pintura de Flávio Tavares.

Quem mais, senão Augusto dos Anjos, poderia servir de inspiração ao presente texto?  O consagrado “Paraibano do Século”, ao longo dos anos, tem sido reexaminado, explorado, exaltado por todos os grandes críticos literários nacionais, de José Guilherme Merquior a Paulo Rónai, de Ferreira Gullar a Oto Maria Carpeaux.  O Correio das Artes, suplemento cultural do jornal “A União”, a pretexto de rememorar os 140 anos do nascimento do poeta, vem de estampar longa reportagem, anunciando inclusive uma edição em braile do “Eu”, que, quase ignorado em sua primeira edição, de 1912, já mereceu, acrescido de “Outras Poesias”, dezenas de reedições. 

Mas há sempre o que se descobrir ou “garimpar” na obra originalíssima do “Doutor Tristeza”, apesar de sua morte tão prematura, longe de sua pátria paraibana, na fria cidade de Leopoldina, MG. E o autor destas linhas tem razões, diria, emocionais ou pessoais, para oferecer modesta contribuição, em complemento aos variados enfoques das autoridades intelectuais ouvidas na reportagem, a quem desde já presto minhas reverências.

Aí pelos doze ou treze anos, estudante ginasiano, quando “cometi” meus dois primeiros sonetos, meu pai me deu de presente o livro “Eu e Outras Poesias”, 19ª edição da Gráfica TUPY Limitada, sem indicação de data, mas, pelo registro de um dos textos introdutórios, posterior a agosto de 1928. E já tive então o primeiro deslumbramento: o texto “Elogio de Augusto dos Anjos”, de Órris Soares, tio-avô do humorista Jô Soares, o amigo que redescobriu o poeta e o lançou nacionalmente, foi escrito, em dezembro de 1919, como lá está registrado, na Praia Formosa, a minha querência, refúgio temporário de tantos intelectuais.

Lendo o livro, pouco entendi dos poemas longos, e mesmo de alguns curtos, mas a musicalidade e um certo tom coloquial dos versos me fez memorizar, até hoje, sem esforço, uma dúzia de seus sonetos.  Esse tom coloquial, sobre que voltarei a falar mais tarde, me parece ser o segredo da familiaridade do poeta com o “povão”, que com ele se identifica, mesmo não entendendo, em parte, a sua fala complicada de “doutor”.

O segundo deslumbramento vim a ter bem depois, ao ter conhecimento do livro do historiador Humberto Nóbrega, “Augusto dos Anjos e sua Época”, quando ele desencava sonetos do autor, nos seus verdes anos, publicados no jornalzinho da tradicional Festa das Neves, em louvor de “beldades” paraibanas.   Entre elas estão Helena Camará, que foi depois a segunda esposa do meu avô paterno, Mateus Gomes Ribeiro, e Celina Rosas, a Tia Nenen, irmã do meu avô materno, Clemente Clementino Carneiro da Cunha Rosas. As fotos das homenageadas, mesmo com os parcos recursos da fotografia na época, podem atestar o seu merecimento.

Augusto dos Anjos viveu numa época de transição entre as correntes literárias do parnasianismo e do simbolismo, mas não se pode enquadrar em nenhuma delas.  Os parnasianos o criticaram, por questões formais – algumas elisões forçadas, raras rimas imperfeitas, que não comprometiam a cadência dos versos – sem dar-se conta da força poética das suas imagens.  Um crítico chegou a falar em “uma alma atormentada de filósofo num corpo de poeta”.  E consta que Olavo Bilac, ao saber da sua morte, teria comentado que não haveria perda para a poesia.

Os simbolistas, por sua vez, com sua obsessão pela sonoridade das palavras (de la musique, avant toute chose) ficaram longe dele.  Cruz e Souza, o afrodescendente que tinha a obsessão do branco (ó formas alvas, brancas, formas claras / de luares, de neves, de neblinas), e Alphonsus de Guimaraens, com a loucura comovente da sua “Ismália”, nada tinham a ver coma poética de Augusto.  Aliás, o simbolismo teve pouca expressão em nosso país.

Editando, por sua própria conta, seu livro, vivendo pobremente como professor particular, desconhecido e desprestigiado, e ainda de saúde precária, não podia o autor do “Eu” ter outro aspecto, nem deixar de refletir sua amargura e seu desencanto pela vida e pelos semelhantes em seu fazer poético.  Assim o descreveu seu biógrafo e apresentador Órris Soares: “magro, faces reentrantes, olhos fundos, olheiras violáceas, testa descalvada”.  Um “pássaro molhado, todo encolhido nas asas, com medo da chuva”.  

Certamente, assim não era ele quando, no foco do historiador Humberto Nóbrega, tecia louvores às “moças em flor” da sociedade pessoense.  A falência do engenho do pai, a vida na pobreza – apesar do título de bacharel em Direito e a vasta cultura científica e filosófica – o não reconhecimento do seu valor pelos semelhantes, moldaram o espírito do autor de “Versos Íntimos”. Quem avaliza esta interpretação não é outro senão o velho José Américo de Almeida, seu contemporâneo.  E a revolta contra a sociedade burguesa parece ter-se estendido à própria família, que impediu, até hoje, a remoção dos seus restos mortais para o seu Estado natal.

Ao aceitar, por extrema necessidade, o humilde posto de diretor de um Grupo Escolar em Leopoldina, MG, e lá morrer de pneumonia poucos meses depois, o nosso poeta legou à fria cidade mineira a honra de abrigar os seus despojos.

Mas volto agora à questão do coloquialismo na poesia “augustiana,” razão, no meu modesto entender, da sua popularidade até hoje.  Superlativos absolutos, expressões cientificas pouco conhecidas não descaracterizam a familiaridade destes versos:

Tome, doutor, esta tesoura e corte

Minha singularíssima pessoa.

Que importa a mim que a bicharia roa

Todo o meu coração depois da morte?

Ah, um urubu pousou na minha sorte!

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Ou estes:

É a transubstanciação de instintos rudes

Imponderabilíssima e impalpável

Que anda acima da carne miserável

Como anda a garça acima dos açudes

Qual poeta parnasiano, ou mesmo simbolista, falaria, num poema, em açudes, realidade tão nordestina e tão popular?

É este, associado à musicalidade dos seus versos, o segredo da merecida fama do paraibano do século XX.

Mas me resta ainda abordar um tema que mereceu a tese de mestrado de uma professora da Universidade Federal de Juiz de Fora, MG, Márcia Peters Sabino, e que me chegou às mãos e não foi explorado na rica reportagem do Correio das Artes: “Augusto dos Anjos e a Poesia Científica”.  É verdade: existiu uma “onda”, mal concebida, de “poetizar cientificamente”, enchendo os versos de palavras e preceitos da ciência, numa total incompreensão da natureza afetiva da arte, divergente, como é, dos puros exercícios da razão.

A “onda” teve seus próceres e seus técnicos, sobretudo da chamada “Escola do Recife”, com Martins Júnior, Rocha Lima, Tobias Barreto e Sílvio Romero, mas também com supostos antecedentes.  O positivismo de Augusto Comte e as ideias de Haeckel e Darwin também tiveram a ver com o caso.  E na Antiguidade, imaginaram precursores em Lucrécio (“De Rerum Natura”), em Horácio (“Ars Poetica”) e Ovídio (“Ars Amandi”).  Afirmações como a de Spencer (“Não só a ciência serve de base à escultura, à pintura, à música e à poesia, como também a ciência é, por si mesma, poesia”) ou de Zola (“A grande poesia deste século é a ciência, com seu transbordamento maravilhoso de descobertas”), mal compreendidas, serviam de base à novidade.  E haja, goela abaixo dos leitores, versos “científicos”, sem qualquer dimensão poética.

Nosso poeta deve ter sofrido tal influência.  Mas, como era de esperar, todos esses “inovadores” estão hoje esquecidos, com a exceção de Tobias Barreto, mais filósofo que “científico”, e Sílvio Romero, como historiador.  E Augusto sobreviveu, revelando-se a cada dia mais pujante.  Porque era um verdadeiro POETA, trágico ou lírico, sombrio ou iluminado, e soube preservar, acima do cientificismo, o halo, o enlevo, o mistério, o deslumbramento da poesia.