Corre no Senado brasileiro o Projeto de Lei 403/2022 que “isenta veículos elétricos e híbridos do Imposto de Importação até 31 de dezembro de 2025”. Paralelamente, deambula na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 5308/20 que “isenta do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) as importações e as saídas de veículos elétricos ou híbridos”. Também redução para zero das “alíquotas do PIS/Pasep e da Cofins incidentes na importação e sobre a receita bruta de venda no mercado interno desses veículos” (sic). Trata-se de carro elétrico – já comercializável – que, no presente estágio da tecnologia, é movido por energia estocada em bateria (de 400 ou 800 volts).
Fatos do início deste século ajudam ao questionamento sobre qual seria o interesse brasileiro no uso de carros elétricos. Rogério Cezar de Cerqueira Leite, grande cientista, com excelente visão sobre os interesses globais da humanidade, viu no etanol uma solução mundial para carros que venham a mitigar contribuições para o Aquecimento Global. Na entrada do atual século, Cerqueira Leite entusiasmadamente dirigiu uma pesquisa sobre a capacidade brasileira de exportar álcool combustível. Sonhou com um mundo beneficiado por largo uso do etanol como combustível veicular, sem a este atribuir o caráter de solução zero-carbono – termo não usual no linguajar da época –, como hoje se faz com respeito ao carro elétrico. Não iria iludir. Sempre frisou a importância do uso do etanol para ajudar a desacelerar o avanço do Aquecimento Global.
É inegável que o uso do etanol como combustível autoviário não contribui diretamente para aumentar o teor de dióxido de carbono na atmosfera. O carbono liberado pela combustão de um motor veicular vai ser absorvido para o crescimento da cana-de-açúcar equivalente à que foi usada para produzir o etanol queimado pelo processo de combustão. Diferentemente do veículo movido a combustível de origem fóssil, gasolina, diesel, gás veicular – que adiciona à atmosfera o dióxido de carbono.
O carro a etanol já apresentava, no início do século XXI, tecnologia consolidada, disponível mundialmente. Para produção dos veículos e para produção e uso do etanol. Inovações condutoras a mais elevados níveis de eficiência foram desenvolvidas. E continua havendo espaço para significativos melhoramentos. Irrefutável solução de Mitigação ao Aquecimento Global face ao carro movido por combustíveis fósseis. O carro elétrico veio, então, a ser vislumbrado como alternativa.
O sonho de Cerqueira Leite não seria alcançado. Não interessava aos líderes ocidentais. O álcool, da produção ao uso em veículos, era tecnologia dominada e de uso público na virada do milênio. Não geraria dependência tecnológica, nem a decorrente perspectiva de ganho, para alguns, que tal dependência gera. A vantagem da produção seria dos países tropicais, não-hegemônicos. É produzível em grandes e pequenas unidades, com relativamente pouco capital, bastando literalmente sol e água em abundância, em comparação com o capital investido na produção dos combustíveis fósseis. E não se trata de reservar aos pequeninos produtores a categoria de tecnologicamente toscos. Nos anos oitenta do século passado, as autoridades agropecuárias norte-americanas distribuíam manuais para instalação de unidades de pequeno porte de produção de etanol a partir de restos vegetais. Totalmente automatizadas, tais unidades emitiam um aviso sonoro suficientemente alto para ser ouvido pelo pequeno produtor, agricultor familiar ou individual, dentro de sua unidade de produção agrícola, para intervenção reparadora caso algum parâmetro monitorado indicasse processo fora do controle. Dá uma ideia do tamanho mínimo de uma unidade de produção eficiente para produção de etanol. Terminaria sendo mais uma vantagem para países onde o capital é mais escasso. É difícil controlar este mercado para a implantação de medidas que interessem estrategicamente aos distintos membros do clube de hegemônicos. A adoção do etanol como base energética veicular não interessava estrategicamente ao conjunto de hegemônicos do Atlântico Norte.
As energias foram dirigidas para o carro elétrico, que tem uma grande vantagem estratégica. As baterias são, no momento, importante elemento de viabilização. Devem ser baterias de alta performance, e cuja tecnologia de produção comercial não é de domínio público. É materialmente baseada em metais raros. A mineração envolve poucos locais, é concentrada. A simples mineração e o beneficiamento dos minérios exigem porções de capital significativamente maiores do que a típica unidade de produção de etanol. A cadeia de produção dessas baterias é caracterizada por grandes blocos de capital e, portanto, por uma facilidade de controle incomparavelmente maior do que a produção de etanol. É singular o expressivo esforço coletivo, dos hegemônicos do Atlântico Norte, pela consagração do carro elétrico. Em partes destes países, o eficiente motor diesel está com proibição determinada e legislação já há que proíbe o uso de motores de combustão, em geral, para pouco mais de uma década adiante. O interesse estratégico deste conjunto de estados tem propiciado condições econômicas favoráveis à atração do capital privado pelo negócio de produção de carros elétricos.
Tal veículo, ao ser comparado a um carro movido a etanol, revela-se inferior quanto à contribuição para Mitigação do Aquecimento Global. Ambos são, na linguagem corrente, zero-carbono. Mas apresentam emissão de dióxido de carbono, tanto na produção quanto no uso. Por causa só da enorme bateria, o carro elétrico – ao chegar ao concessionário, para venda – já terá emitido o equivalente a cerca de 8 anos de uso típico de um análogo carro a gasolina, quando a produção segue padrão convencional de emprego de combustíveis fósseis. Na Europa, onde a bandeira do carro elétrico conta com maior apoio de políticas públicas, a energia elétrica é obtida majoritariamente por meio do uso de combustível fóssil, o que termina por trazer, por quilômetro rodado, substancialmente maior emissão de dióxido de carbono do que um carro equivalente movido a etanol. Mas, mesmo no Brasil, com maior participação de energia renovável na matriz energética – entre os países de dimensão continental – o carro movido a etanol ainda representa menor emissão de dióxido de carbono do que um carro elétrico equivalente.
Diante das vantagens do carro a álcool face ao carro elétrico, qual o sentido de se isentar o carro elétrico de imposto de importação no Brasil? E também se aportar redução de IPI e de outras incidências?
Uma forma de avaliar a questão é procurar entender qual o efeito dessa isenção sobre os consumidores. Os carros elétricos custam, em geral, entre o dobro e o triplo dos carros a etanol correspondentes. Um cidadão que não pode optar pela compra de um carro elétrico onerado pelo imposto de importação pode vir a comprar um carro a etanol equivalente (mesmo padrão de utilidade e conforto). Ele estaria mantendo o que considera comodidade no usufruto do direito e ir e vir, seja trabalho ou lazer, e não teria perda. No entanto, se o imposto for eliminado, a perda fica para o país, em termos de receita fiscal e de geração de empregos. Além de perda de receita, se estará incentivando a substituição de carros a etanol, fabricados no país, por carros importados. Cada emprego que se gera lá, nas praias do Atlântico Norte, ou na Ásia, se perde cá, no Sul. A troco de que, o Brasil, mestre em geração de sub-emprego, deve incentivar a economia dos mais desenvolvidos, ao custo de desincentivar a nossa, quando – nos últimos 40 anos – evoluímos de país emergente para país submergente, e ficamos presos na chamada “armadilha da renda média”? Visto por outro ângulo: entre 1945 e 1980, a renda per capita dobrava a cada 15,9 anos; projeções baseadas em 1980-2021 dizem que tal duplicação passaria a exigir 87,5 anos – algo que nos aproxima de quase-estagnação.
Por que nós, também campeões em desigualdade de renda, deveríamos presentear com renúncia fiscal segmentos sociais mais aquinhoados – aprofundando a desigualdade – a troco de perda de receita fiscal? O carro elétrico a bateria deverá acentuar a clivagem entre ricos e pobres, já que, pelo preço, exclui – do usufruto desse premiado objeto de consumo – os não muito bem aquinhoados.
Nos países periféricos, a minoritária classe A tenderá, com ou sem isenção de impostos de importação, a andar em carros elétricos. É chique, caro, e quando pega fogo ninguém pode apagar, levando os bombeiros a nova função, a de espectadores institucionais de incêndios. Fora essa minoria, os carros a álcool continuarão a rodar no Brasil. E possivelmente, nos demais países periféricos. Estes estarão menos atingidos pela poluição exacerbada dos pneus dos carros elétricos, devido ao maior desgaste. O indivíduo que mantiver opção por carros a etanol não terá, diante do rumo que está tomando a incipiente indústria de veículos elétricos, que enfrentar eventual escolha de ser incinerado a 400 ou a 800 volts – ameaça remota, mas não impossível.
Um importante alerta, para reflexão de todos e tomada de consciência dos nossos políticos.
Parabéns aos autores.
Estou entre os que acham que neste país tão extenso a gente nunca devia ter acabado com os trens. Tenho saudades de quando fiz Rio-São Paulo de trem. Aí talvez tenhamos sofrido a “pressão” da vanguarda tecnológica americana de então, e erro do Juscelino. O artigo tem considerações justas sobre nosso etanol, mas não creio que foi por culpa da indústria automobilística nos países de vanguarda tecnológica que ele não avançou mais. Culpa nossa mesmo, e, de novo, “perdemos o bonde”, pois já se pode comprar um carro elétrico por menos de 150 mil reais, que está chegando da China, hoje a vanguarda dos carros elétricos. Claro que não se deve subsidiar o carro elétrico, há coisa muito mais essencial precisando de subsídio aqui no país. Nem é necessário: de janeiro a maio deste ano, enquanto o mercado total de automóveis e comerciais leves caiu 18%, no segmento de elétricos e híbridos ele aumentou 57,7%. Nesse país campeão de acidentes de trânsito por falha do motorista, ninguém se preocupou com a eventual perspectiva de virar churrasco. O que eu gostaria mesmo é de “trem-bala”. Mas nisso também os campeões hoje estão na China.
Helga,
A opção pelo automóvel foi feita pelos países centrais. Falar em “erro de Juscelino” encerra certo exagero. A oferta de capital externo, na era JK, era tentadora. O Brasil era o “país do futuro” e necessitava de poupança externa. O mercado (brasileiro e latinoamericano) era oportunidade para esses capitais. O espírito de Vargas era forte presença, assim como a influência intelectual da Cepal. Industrialização era um imperativo. E o automóvel já era sonho de consumo no Ocidente. O erro estratégico brasileiro foi privilegiar rodovias, sem “ver” o longo prazo, projetando-se um sistema multimodal de transporte. O automóvel foi a cereja no bolo. Juscelino, com perfil de sonhador, foi o cara na presidência.
Ao fazer da indústria automotora o principal vetor do desenvolvimento econômico, os países centrais demonstraram total ausência de visão de longo prazo. Construíram um progresso que doentiamente colaborou para tornar a Terra insustentável e acelerou um contraproducente fenômeno, o Aquecimento Global, produzido pela queima de combustíveis fósseis.
Ao Brasil – novamente – também faltou visão de longo prazo, na década de 80 do século passado, que reservasse ao etanol um papel destacado no suprimento energético da frota nacional automotora – nisso concordamos.
A Europa e demais líderes do Atlântico Norte também refugaram o etanol, cingindo-se aos veículos elétricos a bateria, como objetivo a ser alcançado via aplicação de vastos incentivos, destacando-se os dirigidos aos adquirentes destes veículos. Como emissão de gases estufa total, esses veículos superam os próprios carros a gasolina, cujos impactos no Aquecimento Global viriam a ser supostamente zerados. Do ponto de vista privado, tornam-se viáveis com pesados subsídios. A explicação para tal comportamento dessas lideranças, mantemos, tem a ver com razões estratégicas.
Adriano Dias e Tarcisio Patricio
Artigo muito bom, Adriano e Patrício. Faltou, talvez, lembrar que antes de se ter o veículo a etanol, o processo anterior depende em boa medida do uso de combustíveis fósseis. A solução quiçá se encontre numa vida mais frugal, de menos consumo. O que é uma tarefa gigantesca, haja vista que a nossa é uma “sociedade de consumo”. Que só faz pipocar a pegada ecológica, levando ao “overshoot” (William Rees) da extração de recursos e lançamento de dejetos na natureza, além da capacidade regenerativa e assimilativa do planeta. Verdadeira raiz (meta-problema que é) do aquecimento global, acidificação dos oceanos, perda de biodiversidade, etc. Receita para um colapso ambiental global.