Caríbdis    – monstro marinho na mitologia Grega.

 

Aproxima-se a nau brasileira, perigosamente, do ominoso estreito de Messina, em que águas turbulentas podem levá-la, seja de encontro ao rochedo, seja ao promontório, e reduzi-la a destroços.  E não temos – ainda, pois não convém matar de véspera a esperança – um Ulisses para nos conduzir nessa dramática travessia.

Recorrendo à prosopopeia, temos de um lado o rochedo, na forma do militar insubordinado, de baixa patente, que barganhou uma reforma precoce, tornou-se parlamentar do chamado “baixo clero”, e após muitos anos, por um profundo desencanto do eleitorado com a classe política tradicional, e mais, com aqueles que se apresentavam como “políticos éticos” e se deixaram corromper pelo poder, elegeu-se presidente da República.

Do outro, um nordestino emigrado, líder operário esperto, que soube guindar-se à política e conquistar a simpatia dos brasileiros, ao ponto de, após várias tentativas, chegar à presidência do país e até mesmo impor a sua sucessora. Duas experiências a cotejar, na perspectiva do futuro próximo: um passado recente, de triste memória, e um presente inquietador, sob múltiplos aspectos.

Que dizer do militar?  Declaradamente homofóbico, misógino, conservadorão, nepotista, arbitrário, boquirroto, insensível às preocupações ambientais, armamentista… Seu ministério tem apresentado um desfile de nulidades: uma ministra da mulher que declara ter visto Jesus no alto de uma goiabeira, um ministro do meio-ambiente que propôs “passar a boiada” do avanço de garimpeiros e desflorestadores sobre as terras indígenas, cinco ministros da educação que se sucederam sem sequer apresentar uma diretriz educacional moderna, um ministro da segurança que pretende resolver os gravíssimos problemas nessa área simplesmente armando a população… E para remate de males, a evidência renovada de desrespeito à ordem jurídica e institucional do país, o trato irresponsável da economia pelas concessões políticas visando à reeleição, e a ameaça de “virar a mesa”, se vier a perdê-la, com o cediço argumento da inconfiabilidade das urnas eletrônicas. Não pode haver quadro mais tenebroso.

E que dizer do nosso operário, eleito como uma prova de maturidade da democracia brasileira, por um partido que se distinguia pela sua postura ética, depositário de tantas esperanças? Condenado em três instâncias judiciais, preso por comprovados casos de corrupção, posto em liberdade apenas pela tecnicalidade jurídica da incompetência de foro, veste agora o manto da inocência e habilita-se assim a restaurar, se eleito, todo o esquema de peculato montado pelo seu partido, cujos dirigentes e “sócios” têm sofrido um verdadeiro leque de condenações.  Em vários casos, são réus confessos, que aceitaram devolver parte do dinheiro roubado em troca de reduções de penas. Como entronizá-los mais uma vez no poder?  Ainda mais quando se sabe, pelo seu já anunciado programa, que vão começar desfazendo as poucas conquistas político-administrativas dos últimos anos, que não têm qualquer conotação ideológica: o teto de gastos, que impõe uma fixação honesta de prioridades, e a flexibilização das leis trabalhistas, velhas de setenta anos, incapazes de refletir a nova realidade do mundo do trabalho.   E de quebra, temos o plano macabro, comum aos dois concorrentes, de cercear a atividade da imprensa, o grande marco emblemático da democracia.

Alguns intelectuais de boa- fé, ante a aparente falta de alternativas, querem optar pelo “mal menor”, propondo a eleição do candidato operário, mesmo para combatê-lo de pronto, o que seria tarefa mais fácil.  Seria mesmo?  Cabe levar em conta, no caso, a personalidade carismática do retirante humilde, que venceu na vida com extremo esforço, e hoje, abastado, ainda consegue convencer seus eleitores de sua pureza d’alma, contra todas as evidências.  

Corolária dessa estratégia, e igualmente falaciosa, é a diretriz de, desprezando qualquer alternativa mais digna, assegurar a vitória desse candidato logo no primeiro turno da eleição.  Uma vitória assim esmagadora desencorajaria o derrotado de tentar o golpe militar. Mas quem pode assegurar isso? Não parece haver qualquer consistência em tal suposição. Perder no primeiro ou no segundo turno não faz diferença para quem despreza as regras democráticas.

E há mais um inconveniente, por outro lado. Uma vitória do candidato opositor no primeiro turno, sem ter ele a necessidade de compor-se com outras forças do centro democrático, encheria de ar o vitorioso, como a rã da fábula de Fedro, que queria equiparar-se ao boi (“Rana rupta et bos”).  Sem limitações para suas propostas políticas levianas nem inibições para as velhas práticas de corrupção, ele poderia até não arrebentar, como a perereca alegórica, mas arrebentaria o país.

Enfim, o que resta à nau brasileira, diante do tenebroso estreito de Messina?  Cila e Caríbdis são obstáculos igualmente destrutivos, e não há escolha válida para navegadores bisonhos.  A não ser – não nos resta outra perspectiva – esperar, confiar, e promover um timoneiro (ou timoneira) qualificado, que nos possa conduzir a salvo por entre os duros rochedos. Cumpre-nos acreditar que tal escolha ainda é possível.