Pureza, o filme.

 

É ficção, não é documentário. Levou onze anos sendo feito, pois a produção incluiu pesquisa de campo, para estudar, no Maranhão e no Pará, os detalhes da geografia, da economia, da sociedade, e da biografia das pessoas que inspiraram a obra de arte. “Pureza”, o filme do diretor Renato Barbieri, ficou pronto em 2019. Mas cinemas fecharam com a pandemia, e somente passados dois anos e meio “Pureza” chegou ao circuito comercial, em 19 de maio de 2022. Na véspera, pré-estreia especial em São Luis, Maranhão, e Sobral, Ceará. 

Conta a história de uma mulher muito pobre, vivia de vender os tijolos que produzia junto com o filho na pequena olaria: desde tirar e triturar o barro até o cozimento em fornalha primitiva, tudo era manual. Um dia o filho decide ir embora buscar trabalho melhor, que a olaria mal dava para sobreviver. Quando o filho não volta nem dá notícia, a mãe decide partir a sua procura.

A narrativa é construída pelo olhar dessa mãe: parte só com uma bolsa grande, roupa do corpo, e a bíblia no meio da qual coloca a foto do filho desaparecido. E os olhos atentos dessa mãe, que mostra em cada novo lugar aquele retrato perguntando se “alguém viu”, enxergam muita coisa que nunca percebemos e que deveríamos conhecer.

Vai parar numa cidadezinha em que trabalhadores são aliciados para trabalhos em roça bem longe dali, para onde são levados de caminhão por estradas de barro quase intransitáveis. Suspeitando que o filho possa ter ido para alguma das fazendas, se oferece de cozinheira, é aceita e parte num dos caminhões cheios de homens fortes, ansiosos por trabalho.

Depois que todos desembarcam dos caminhões, o filme mostra capatazes tomando os documentos de todos, e a sequência de maus tratos, trabalho sob a mira de pistolas, tiros para o ar e nas costas de quem tenta fugir, um trabalhador dependurado numa árvore pelos pés, outros obrigados a atirar no companheiro para não morrer. A alimentação é pouca e a água que bebem durante o trabalho sol a sol vem de córrego poluído. Um adoece com tremores. Essa parte de violência e tortura, de brutalidade sem trégua, é amenizada apenas pela figura maternal de Pureza (na interpretação maravilhosa de Dira Paes), que, às escondidas, tenta lhes obter um pouco mais de comida, trata de ferver a água, cuida do doente – e espera que lhe apareça o filho em alguma clareira da floresta. 

Os trabalhadores são mantidos ali a força. Mas aparece também o caderno de registro de compras de mantimentos e outros artigos no armazém da fazenda, e o endividamento geral que Pureza verifica quando folheia o caderno de soslaio. Fica sabendo desse sistema antigo em que trabalhadores ficavam atrelados à fazenda porque endividados no armazém.

Testemunha de todo o horror, Pureza consegue fugir, vai procurar ajuda, mas não consegue que autoridade alguma acredite nela. Vai à igreja da cidadezinha e conta sua história, consegue convencer o padre Flávio a levá-la de volta ao lugar de onde fugiu e ensiná-la a usar uma máquina fotográfica para obter provas. (Aliás, é bela a fotografia de todo o filme, de Felipe Reinheimer, os tons cinza, terra e ocre se alternam com o verde da mata, e a trilha sonora é linda também.) Pureza consegue tirar muitas fotos, e só não morre baleada por um triz, conseguem fugir, o padre ao volante do jipe metralhado pelos capatazes. É ferida na disparada. A sequência é veloz, não vale contar aqui, mas o filme, em contraste com a narrativa até ali, termina em “happy end” de alívio e felicidade geral, para produzir lágrimas: as autoridades finalmente acreditam nas provas dela, os trabalhadores são libertados, ganham carteira de trabalho, indenizações e salário atrasado, ali na hora, sob as árvores, e Pureza abraça o filho que chega da floresta. 

É filme político, e Barbieri quis que assim fosse: ”Este é o cinema social que faço. A ideia é trazer o Brasil profundo para o colo da cidade.” (Entrevista a “Cinema com Rapadura”.) Conseguiu promover o filme nos sindicatos, de tal modo que no último dia 13 de maio, dia da abolição da escravatura, vários sindicatos, o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo incluído, promoveram um tuitaço com #naoaotrabalhoescravo e @todosprecisamverpurezaofilme. A ideia é combater o que é inadequadamente chamado de “escravidão moderna”. Moderna? Ou apenas trabalho ilegal? Pois o Código Penal, desde as alterações de 2003, define “trabalho análogo ao escravo” como aquele em que seres humanos estão submetidos a trabalho forçado, jornadas tão intensas que podem causar danos físicos, condições degradantes, e restrição de locomoção em razão de dívida contraída com empregador ou preposto.

Essa “escravidão moderna” está fora da lei, não persiste por “mentalidade escravocrata” de escravizadores e escravizados, e sim porque a rede institucional de controle é precária ou inexiste. É um sintoma da pobreza geral, em que os trabalhadores não encontram alternativa de emprego. E a fiscalização? Tem medo de levar bala, mais ainda que os trabalhadores que tentam escapar? Será que o mais importante agora não é requerer que a fiscalização esteja presente nas áreas de difícil acesso? 

“Pureza”, como filme político, não escapou da polarização. Críticos de cinema, que já viram “Pureza” nos festivais em que obteve vários prêmios, se dividem: uns elogiaram o uso do cinema como ferramenta social, na luta por direitos humanos e combate ao trabalho análogo ao escravo, mas alguns condenaram a dramatização caricatural. É inspirado (ou “livremente baseado”) em uma história real, a de Pureza Lopes Loyola, trabalhadora rural nascida em Juscelino Kubitschek, perto de S. Luis do Maranhão, que aprendeu a ler “para poder ler a bíblia”. Chegou em Bacabal, onde o marido tinha parentes, com três filhos, e ali nasceram mais dois. Depois de ficar sem marido, trabalhava ombro a ombro com os filhos numa olaria primitiva. Quando ficou sem notícia do filho caçula, Abel, em 1993, vendeu tudo o que tinha e saiu em peregrinação buscando o filho.

Começou a trabalhar como cozinheira em fazendas no sul do Pará, pois achava que Abel teria procurado garimpos nessa região. No trajeto, viu trabalhadores vítimas de maus tratos e em situação hoje definida como “análoga à escravidão”. Pureza Lopes Loyola não testemunhou nenhum assassinato, mas pelo caminho viu as cruzes fincadas na terra que marcam vidas curtas e muita pobreza. Em busca do filho conseguiu mobilizar muita gente. Depois de pedir ajuda a um padre, obteve o apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT). O diocesano Flavio Lazzarin, italiano de Mantua que está desde 1987 no Brasil, relembrou, para um repórter da BBC, o dia em que Pureza entrou em sua igreja. Com a ajuda da CPT, ela fez contatos com o Ministério do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho no Maranhão, no Pará e em Brasília. Escreveu cartas de próprio punho a três presidentes (Collor, Itamar e FHC). Conseguiu reencontrar o filho Abel em 1996, depois que este conseguiu fugir de uma das fazendas da região. Sua jornada deu impulso a que fosse criada, no fim dos 1990, o Grupo Especial Móvel de Fiscalização, que uniu Executivo, Ministério Público do Trabalho e Judiciário para tratar do cumprimento da lei e a observância de direitos trabalhistas na Região Norte. Na época sua teimosia teve tal repercussão que, em 2010, Pureza L. Loyola recebeu prêmio da “Anti-Slavery International”, a mais antiga entidade mundial de combate ao trabalho escravo, fundada em 1839, que hoje luta contra tráfico de pessoas, trabalho infantil forçado, trabalho forçado e por endividamento e trabalho com base em descendência. Pureza, a real, viu o filme sobre ela mesmo, na estreia, e gostou.

Militantes e preocupados com as leis trabalhistas e de segurança do trabalho no centro industrial do país divulgam Disque 100 e o site mpt.mp.br para denúncias contra “trabalho semelhante a escravidão”. Podemos ficar com a consciência tranquila, para quê fiscalização móvel? Para quê pedir força militar nas fronteiras molhadas? Para quê ensinar (como fazia Bruno Pereira) os indígenas em terras demarcadas a se defender de incursões de invasores fora da lei? Os trabalhadores lá dos garimpos ilegais da Amazônia podem denunciar suas condições de trabalho degradantes, ou também aqueles nas barcaças carregadas de toras de madeira extraídas de terras da grilagem, que uma tora daquelas rolando pode matar um descuidado. Podem pedir ajuda à PGR os que se encontram nos cursos d’água ermos, nas lanchas com carregamentos de droga ou de armas cruzando a fronteira, na escuridão da mata onde sequer precisam esperar o cair da noite. Por que Dom Phillips e Bruno Pereira não avisaram simplesmente mpt.mp.br? Por que não fizeram suas denúncias presencialmente numa procuradoria do Ministério Publico?

Brutalmente fomos relembrados, nestes dias, que “trabalho análogo ao escravo” (que hoje é “trabalho em situação de ilegalidade”) existe mais que tudo em áreas de acesso difícil ou impossível para o cidadão comum, aonde não se chega sem o apoio ou de aliciadores ou do Poder Público empenhado em suas funções. Não um Poder Público em estado de autoboicote. Brutalmente fomos relembrados que a fiscalização e o controle importam, sim, e muito, porque o trabalhador que não tem alternativa de trabalho não tem como denunciar. Mesmo que libertado numa área, onde uma fiscalização móvel do Poder Público (e armada) consiga chegar, ele acaba trabalhando noutra área ali perto nas mesmas condições. Não é nas zonas mais ricas que devemos lutar para resgatar trabalhadores em condições de ilegalidade (ainda que também ali às vezes sejam descobertos trabalhadores, e imigrantes, em condições miseráveis). É nas zonas do Brasil profundo aonde a força da lei não chega e onde o poder público parece não se interessar por obrigar o seu cumprimento.

Ainda outro dia “libertaram” um trabalhador rural em uma fazenda do Mato Grosso cujo acesso era apenas por lancha. Mas a “escravidão moderna” já mudou para o garimpo e o desmatamento ilegal, a caça e a pesca em áreas proibidas, os esquemas ilegais de transporte de armas e drogas. Quem entra arrisca a vida se quiser sair.

O cinema no centro de São Paulo em que assisti “Pureza”, na semana da estreia, estava vazio, contei 11 pessoas. No fim, algumas aplaudiram. @todosprecisamverpurezaofilme E lembrar que Dominic Phillips e Bruno Araújo Pereira foram assassinados porque se esforçaram por combater trabalho ilegal e apropriação ilegal na Amazônia. Não foi no Pará, foi mais a noroeste. Lembrar que ali a violência real, diferente do que acontece em “Pureza”, é maior que em qualquer ficção.