Por uma estreita vereda na Serra da Borborema, eu corria tentando escapar do destino. Súbito, nuvens baixas começaram a lançar sobre mim pingos que eram verdadeiras pontas de afiados punhais Caroca, feitos de sucatas de trilhos, temperados com chifre de boi cujos cabos, cada um uma obra de arte, juntavam argolas de ouro, prata, vidro, madeira e marfim. Um desses punhais de cangaceiros trouxe-me para o Rio de Janeiro.
Havia ficado para trás, quase esquecido, o momento em que cheguei na cidade Maravilhosa.? Na plataforma da estação, duas malas: na azul, minha parte boa, herdada dos meus pais; na vermelha, meu amigo, o punhal Caroca e minha inimiga, minha sombra feia, grotesca, medonha, contraída na minha infância. Deixara Campina para trabalhar na cidade grande a despeito do meu pai sempre glosar:
— Cantar não é trabalho.
Mas, o destino me impelia, me entusiasmava, me alforriava. No Rio, onde a loucura convidava ao impossível, poderia me tornar quem sempre quis ser ou, por acaso, morrer. Estrelas nos olhos e o desejo de cantar no coração.
— O que você está pensando Raimundo? se pergunta ainda se os pinguins possuem joelhos?
Ela, doidinha, sempre fora do compasso, fazia rir meu coração recordando o instante de deslumbre do nosso primeiro encontro: depois de muito andar atrás de emprego, eu havia chegado ao Bola Preta, na Lapa. Na porta, quase nos chocamos, por pouco, não caímos. Olhou para mim e riu. Não senti mais minhas pernas, coração disparado. Ela, luzia como uma papoula ao sol. Mas, o que nela me embriagava não era a essência opiácea da flor que carregava e que me fazia parecer perdido: era sua fala que abria, como afiada quicé, a senda para meu forte e rijo coração sertanejo.
— Quer ver a Cidade? —Falou como que me devorando, fragrâncias entrando pelas janelas de minh’alma, bonita, alta, musculosa; pensei fosse uma dançarina. No rosto anguloso, uma mecha de cabelo sobrava sobre sua face. Passeamos pela Lapa, depois Copacabana, depois meu apartamento, depois o dela, depois caminhamos pelos becos, passeamos pelos terraços. Dançamos, bebemos e rimos. Meu belo punhal me acompanhando.
Ela sempre teve o dom? ou era eu que ria constantemente porque gostava tanto dela? Não! Ela era mesmo cheia de graça. Paixão em um momento, em um olhar. Eu tinha para mim que histórias de amor fossem construídas a longo prazo, onde paciência e cautela eram palavras-chave. Nada a ver com Ypólita. Quem poderia pensar que eu me apaixonaria perdidamente por uma mulher chamada Ypólita?
Descobri que sua mãe era costureira, que ela era a mais velha de dez irmãos, que havia trabalhado desde cedo para poder viver seu sonho. Que gostava de?croissants, vinho tinto e cinema. Uma vez me confessou que seu maior segredo era não ter nenhum, que queria ser poeta. Gostava de café preto e torradas com manteiga. Dormia de meias e tomava banho de manhã e à noite. Queria quatro filhos, duas meninas e dois meninos. Era progressista, amava a França. Eu sabia que ela, como eu, gostava de dançar para se sentir viva e que amava viver para poder dançar. No langor do depois do amor ela investigava minhas roupas, minha mala, minha vida.
O show acabou. Saí do Bola Preta e cheguei ao prédio do seu apartamento. Fui até o sétimo andar, no fim do corredor. Ypólita, linda, abriu a porta; meu formoso punhal Caroca em sua gentil mão, e senti, desta vez no peito, a dor da estocada.
02/06/2022
Muita sensibilidade. Estou descobrindo um novo escritor.
Muito bom!