Guimarães Rosa.

 

Sempre que fiz palestras sobre Guimarães Rosa, as pessoas costumavam perguntar, entre curiosas e interessadas, por qual livro começar a ler o genial escritor. Naturalmente, nunca recomendei a “opus magnum”, “Grande sertão: veredas”, justamente por esse livro excepcional ser um verdadeiro “tour de force” para os iniciantes. Ciente de que um primeiro acesso à obra de Rosa é uma experiência única e, por isso mesmo, capaz de provocar um tremendo choque no leitor, eu aconselhava a começar a lê-lo por “Primeiras Estórias”, cujos contos curtos, impregnados dos melhores traços do autor, seriam uma espécie de pouso suave na sua literatura. 

Agora já não penso como então. Acho que o pouso suave poderá ser ainda mais suave, sem deixar de ser estranho e encantador, se o incipiente e insipiente leitor começar a ler o escritor por outro livro seu: “Ave, palavra”, que acaba de ganhar (alvíssaras!) uma nova edição. O título, por si só, já é uma espécie de sinal da própria postura apaixonada do escritor por seu ofício: uma saudação à palavra, um cumprimento à linguagem, um bom-dia à literatura. 

Rosa, como se sabe, foi uma espécie de predestinado a revolucionar a literatura brasileira e de alçá-la, junto com Machado de Assis, a um patamar de alta e universal qualidade. De par com sua fecunda capacidade fabuladora, possuído, como fazia questão de dizer, por um horror ao lugar-comum, empreendeu uma sistemática neologização da língua portuguesa no Brasil. Segundo a professora Nilce Martins, autora de “O léxico de Guimarães Rosa”, ele é o criador de 8 mil novos vocábulos, todos integrados organicamente a seus textos literários. Como se isso não bastasse, e como a crítica apontou mais de uma vez, seus maiores arrojos e invenções não se dão no campo morfológico, mas no campo sintático, o que torna a sua escrita inimitável, embebida de surpresas e de transgressões que criam um novo olhar epistemológico sobre os seres e o mundo. Eis, comprimida num sacrificado parágrafo, a revolução literária rosiana. Apesar disso, acreditem, ele conclamava a ler seus livros sem o auxílio de um dicionário, apenas bastando se estar provido do olhar da sensibilidade. E estava certo. 

“Ave, palavra”, no contexto da obra rosiana, tem uma posição singular por dois motivos. O primeiro é que, ao lado de “Estas estórias”, se trata de um livro póstumo. O segundo motivo é ser uma “miscelânea”, como bem o definiu o próprio autor. Mas quem lhe deu a forma final — e, por assim dizer, fez a sua revisão técnica — foi Paulo Rónai, amigo do escritor e legendário crítico e tradutor literário húngaro-brasileiro. “Ave, palavra” é uma espécie de coleção do que estava parcialmente disperso no ateliê do artista, um conjunto de pequenas obras: contos curtos, crônicas, breves poemas, reflexões, páginas de diário, historietas para crianças; enfim, textos prontos e nem sempre classificáveis.  O que os une é uma mesma e singular mundividência mediada pelo costumeiro uso criativo e revolucionário da linguagem. Como sempre, desde sua estreia com o hoje famoso “Sagarana”, Rosa joga com as palavras, escolhe-as a dedo, ressignifica-lhes os sentidos, inventa outras tantas e deixa transparecer sua visão de mundo, atento a mil apelos de uma realidade mágica, mitopoética e em constante mudança. Dois subconjuntos que integram a obra — “O burro e o boi no presépio” e “Jardins e riachinhos” — ganharam vida própria e se tornaram belos livros de arte e bem o mereceram. 

Agora uma breve palavra para realçar o Rosa frasista (de resto, o mesmo que está presente em toda a sua ficção). Suas frases, por vezes sentenciosas (se posso falar assim, sem ser pejorativo), são como termos em negrito, que nos põem em alerta tanto para a reflexão filosófica quanto para o achado poético. São como ilhas encantadas onde por momentos paramos capturados pelo brilho da sabedoria e da engenhosa invenção. Ao fim e ao cabo, por trás dos artifícios quase teatrais do escritor, quem está no palco, nua e sedutora, é a própria palavra com seu poder encantatório. Aqui, me permito oferecer ao leitor uma concisa amostra dessas frases mágicas e líricas: “Olhos de ver anjos no ar”; “Enquanto o tempo não parar de cair, não teremos equilíbrio”; “Tudo se acabou tanto, que nem houve”; “Mulheres passadas é que movem amores”; “A saudade é o coração dando sombra”; “Todo ídolo é tentativa de deter o tempo”; “Por onde ando, muito me aconselho: com um olho na via, o outro na poesia”. 

Em suma, “Ave, palavra” é uma ótima entrada para o universo rosiano. O xadrez das palavras exibe um consumado mestre, e o mestre é humilde e forte, pois “Toda poesia é também uma espécie de pedido de perdão”. Ave, Rosa!