Em nossos dias, quando as massas voltam a correr para os braços iliberais de novos fascismos e as polarizações políticas cretinizam países inteiros, vale a pena ler ou reler, senão estudar, um pensador como Norberto Bobbio. Seu nome, como se sabe, não apenas se associa à Filosofia do Direito, à qual dedicou boa parte de seus estudos, como igualmente às grandes questões políticas do século 20 e da contemporaneidade, a exemplo da democracia, da função do Direito, do liberalismo, do laicismo e dos conceitos de direita e esquerda. Um livro recente nos apresenta o pensador italiano em toda a sua complexidade intelectual. Refiro-me a “Norberto Bobbio: uma biografia cultural”, lançado este ano no Brasil e escrito por ninguém menos do que seu discípulo e também filósofo do Direito Mario Losano, de resto tão conhecido em nosso país quanto o próprio biografado.
Bobbio (1909-2004), em sua longa e serena vida, de certa forma se confunde com o agitado e recente século 20. Seu biógrafo logo nos avisa que sua vida intelectual se traduz em duas fases: uma primeira em que predomina “[…] o interesse pelos temas mais jurídicos que políticos”, e uma segunda quando “[…] predominaram temas mais políticos que jurídicos”. Na juventude, o filósofo turinense desde cedo se interessa, uma vez inserido na vida acadêmica, pelas ideias de Benedetto Croce, pelas construções fenomenológicas de Husserl e, em seguida, pelo positivismo de Hans Kelsen (leia-se: a “Teoria pura do Direito”), no qual fará sua ancoragem intelectual, sem jamais deixar de se interessar pela vida real e política de uma Itália que, uma vez fascista, mergulhara na Segunda Guerra Mundial.
Segundo Losano, a fase kelseniana de Bobbio, na qual o pensador alemão é reverenciado e discutido como um teórico do Direito, será substituída pela descoberta, por volta de 1993, de um Kelsen teórico do Estado e da democracia e que será igualmente “uma fonte” de inspiração para o seu pensamento político.
Já os decênios do pós-guerra serão, por sua vez, extremamente fecundos para a produção intelectual bobbiana, o que se deve, conforme o biógrafo, ao fato de que Bobbio “[…] não precisou mais se ocupar ‘forçosamente de estudos politicamente assépticos’”, tal como nos anos precedentes, sempre marcados pela vigilância tirânica do regime fascista. A liberdade recém-conquistada não deixa de ser um estímulo a um autor que, por assim dizer, tanto se preparara para o laboratório social de uma Europa em mutação.
Duas observações de Losano dão uma medida da fecundidade, da presença e do estilo do grande pensador italiano. Uma primeira observação é de caráter estatístico e numérico, que revela uma obra composta de 4.803 “escritos catalogados”, que englobam 128 volumes, 944 artigos e 1.452 ensaios, sem contar 457 entrevistas, 316 conferências ou aulas e 455 traduções em 22 línguas. A outra observação é a de que ele sempre foi mais propenso a escrever mais artigos que livros: “A dimensão ideal de Bobbio escritor não é o livro, mas, sim, o ensaio, tanto que a maioria de seus livros são coletâneas de ensaios”. O próprio biografado já sugerira um critério de organização de seus escritos, dividindo-os entre os pertencentes à “cultura acadêmica” e os atrelados à “cultura militante”. Por isso, sintetiza Losano com acuidade, “Em Bobbio, o pensador sistemático convive com o escritor assistemático”. Eis, portanto, decisivos sinais de um autor que proustianamente toma e retoma seus temas na busca de compreendê-los e enriquecê-los com o seu pensamento. A disciplina e a constância, de par com um engajamento público e político, fazem com que a obra fermente e se desenvolva.
Para o biógrafo, seu ilustre mestre possuía três grandes qualidades: o diálogo, a clareza e a compreensão. Parece pouco, e é quase tudo. O próprio Bobbio já escrevera com sabedoria e lucidez: “Aprendi a respeitar as ideias dos outros, a parar diante do secreto de cada consciência, a entender antes de discutir, a discutir antes de condenar”. É com esse credo que vai construir sua obra e dialogar com outros pensadores e o diversificado público que sempre o acompanhou. Aqui cabe um parêntese para dizer que Losano emula o mestre, apresentando-o com clareza e deixando, sempre que possível, que ele mesmo fale de sua intensa vida intelectual.
Infelizmente, a extrema velhice do pensador coincidirá, para sua grande desolação, com os vinte anos de Silvio Berlusconi no poder, a época da “democracia ofendida”. Então, como agora no Brasil, estavam em jogo os próprios fundamentos do Estado democrático de Direito. Já com 86 anos, o sábio jurista luta contra a insensatez e a arrogância. Em entrevistas e artigos de jornal, ergue sua voz moral e autorizada contra os desmandos do populismo midiático.
No capítulo final, ao se reportar à “Despedida de Bobbio”, Losano relembra que, um mês após a morte do amigo, estava no Recife, mais precisamente na Academia Pernambucana de Letras, ocasião em que se deteve no pensador apenas como pessoa, “[…] porque com ele desaparecia um mundo que era não apenas meu, mas também de minha geração”. E pontua: “De fato existiam, entre mim e Bobbio, alguns pontos em comum — por assim dizer — ‘existenciais’; pontos em comum que não encontro mais na geração sucessiva à minha”. Seu falecimento, em 2004, como o de dois outros amigos juristas de Turim, Renato Treves, em 1992, e Alessandro Garrone, em 2003, marcou para Mario Losano “[…] a conclusão de uma época: a da guerra, a da Resistência e a do renascimento democrático e econômico”.
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