Tenho divergências profundas com a versão ortodoxa da Economia. Com uma análise minimalista e pontual em que o ocorrido ignora a dinâmica de sua formação, em que as análises se atêm a um aspecto, ignorando o contexto em que estão inseridas, em que a forma se torna mais relevante que o conteúdo, afirma-se como uma quase Ciência Exata e não admite que esteja tratando com seres humanos vulneráveis, que nem sempre têm uma racionalidade cartesiana, que reagem de modo diferente em situações díspares, em que os contextos, a história e a psiquê são fundamentais para os caminhos a serem seguidos.
Tudo que a Economia Clássica nos ensinou, que a Economia Política aconselha seguir, é ignorado. Pior, através de uso intensivo da mídia que pouco entende de Economia, a versão ortodoxa transforma em verdades ideias que se popularizam, que se tornam dogmas para o cidadão comum, e são inquestionáveis. Não é tema deste texto, mas dá o contorno do que será dito.
Em recente artigo no Jornal do Comércio de Recife, economista respeitado, em tom professoral, faz uma análise das primeiras medidas do Governo entrante e assevera:
“É importante que o Governo recém empossado evite questionar reformas como a previdência e a trabalhista, mudanças nos critérios para saque do FGTS, a independência do Banco Central, a política de juros e questões relacionadas ao marco legal do saneamento.”
E mais:
“O Presidente Lula já deveria ter aprendido que o BC precisa atuar com autonomia formal.”
O que se está dizendo, em bom português, é: não mudem nada e atendam aos interesses do mercado. E ainda: o Banco Central autônomo garante independência, garante neutralidade. Suas decisões não devem estar condicionadas a ingerências políticas ou mesmo modelo de desenvolvimento. Tenho muitas dúvidas se é exatamente o que vem ocorrendo.
Não se analisa se o retardar da diminuição da taxa básica de juros impede um programa de crédito popular que venha a diminuir a desesperadora situação atual de grande parte da população, se a reforma trabalhista não conseguiu os resultados esperados, se a previdenciária retirou boa parte de benefícios dos formalizados e ainda deixou ao desamparo trabalhadores que se consideram “empresários” à mercê de aplicativos gananciosos. A visão é unilateral, e se afasta nitidamente dos interesses do trabalho, em prol dos do capital, que muito tem a ganhar com a diminuição de suas responsabilidades legais.
Fico preocupado ao ver como verdade absoluta a visão de neutralidade e independência daqueles responsáveis pela política cambial e monetária, o Banco Central. A tal neutralidade deve ser discutida.
No dia 26, dirigente de nível intermediário do Banco, em coletiva à imprensa, afirmou que houve um “ligeiro” erro nas contas do fluxo cambial de 2021 e 2022.
O fluxo cambial é diferente do balanço comercial, que compila o total de compra e venda de produtos para o mercado internacional. O fluxo cambial é o saldo das operações da balança comercial, das operações financeiras com moeda forte e das operações com instituições financeiras no exterior. O fluxo cambial indica o volume de divisas externas que entram ou saem do país. Tinham esquecido uma rubrica, criada por eles mesmos, no computo das importações e exportações.
Afirmou o dirigente:
“Os números do fluxo cambial de 2022 passaram por ajuste extraordinário, por causa de um erro interno provocado pela criação de códigos de operações cambiais com a nova legislação. Após a revisão, o fluxo cambial do ano passado registrou saída líquida de US$ 3,233 bilhões, em vez de entrada líquida de US$ 9,574 bilhões.”
Chamou a atenção de que mais que essa diferença de cerca de US$ 12,8 bilhões no ano passado, o BC registrou defasagem de US$ 1,7 bilhão entre outubro e dezembro de 2021. Ou seja, o erro total computado foi de US$ 14,5 bilhões.
A imprensa quase ignorou, pouco divulgou, um erro menor, humano é, sem entender que houve conseqüências sérias deste “equívoco” que aconteceu.
Lembro que durante toda a campanha eleitoral, vendeu-se a ideia de que o país tinha se recuperado da pandemia, que as contas externas estavam equilibradas, que havia superávit e uma nítida tendência a crescimento de nossa Balança Comercial e do Fluxo Cambial. O ex-Ministro da Economia alardeou, o ex-Presidente, em debate, se vangloriou. Foi peça de campanha.
O Banco Central autônomo cometeu esse erro que teve impacto político e, para não ser parcial, podemos até dizer que não há provas de que tenha sido proposital, mas houve uma política que pode estar na raiz, e que é base para o posicionamento do Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco Central (Sinal). Em nota publicada e nada divulgada pela imprensa, diz:
“A ausência de concursos públicos e a falta de correção de defasagens salariais provocaram o erro de US$ 14,5 bilhões no fluxo cambial do ano passado.”
O quadro funcional perdeu especialistas com larga experiência. Um esvaziamento que não é apenas daquele órgão. Sete anos sem correção salarial dos salários do funcionalismo público, com pouquíssimos concursos públicos para repor quadros funcionais que se aposentam, trazem repercussões. E pode ter conseqüências sérias, inclusive o uso com viés político eleitoral do aparato do Estado.
O mais complicado, como a tal autonomia existe, não se cobra responsabilidade dos responsáveis, não se verifica se houve propósito explícito das atitudes tomadas.
A falta de compromisso com o quadro funcional faz com que nem haja um posicionamento da alta direção. Diz o sindicato:
“Vale, por fim, destacar que caberia ao titular da pasta de Política Econômica, ou mesmo ao presidente Roberto Campos Neto, vir a público trazer mais esclarecimentos e reforçar a confiança no trabalho do corpo funcional do BC.“
Tentar pautar o Governo entrante, numa agenda em que não possa cumprir seus compromissos de campanha, em que tenha dificultado o caminho para uma sociedade mais igualitária, apenas para se ater a conceitos que os ortodoxos consideram inegociáveis, parece não ser o caminho correto. Tem-se um capital eleitoral que permite ousar com responsabilidade, tendo como norte uma sociedade com maior justiça social. Questionando até a independência do Banco Central.
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