Pode-se dizer que a nossa sociedade é a sociedade do Aparecimento. Tudo e todos aparecem. Há câmeras, luzes e holofotes por toda parte. As redes sociais fazem aparecer pessoas, eventos e opiniões com admirável rapidez. Há uma “máquina de visão” em permanente funcionamento, como observou Paul Virilio em livro homônimo. Por sua vez, McLuhan já havia antecipado que a era da eletricidade deixaria tudo às claras. Dessa forma, todos aparecem num jogo vertiginoso, onde a escala se torna verdadeiramente desumana. “Aparecer” é praticamente o sinônimo de “existir”, o que não é visto não é percebido, etc., etc.

Apesar do fascínio pelos holofotes, pelos palcos, pelo saber-se conhecido por um grande número de pessoas; malgrado o encanto narcísico de ter um rosto exposto como um troféu, de ter um lugar ao sol, há, por outro lado, aqueles que preferem desaparecer, que namoram com a ausência, como outros se casam com a publicidade. Desaparecer é “uma tentação contemporânea”, como bem o diz e bem o prova o instigante e precioso livro “Desaparecer de si”, do sociólogo e antropólogo francês David Le Breton. Não por acaso, “A tentação da ausência está no centro da literatura e do cinema contemporâneos”.

Proust, como se sabe, desapareceu no seu último decênio de vida; trancou-se num quarto forrado de cortiça para se cercar de silêncio e melhor escrever seu oceânico romance “Em busca do tempo perdido”. Por falar em quarto, não se pode esquecer aqui a famosa frase de Pascal: “Muitas vezes eu disse que toda a infelicidade dos homens provém de um só fato, o de não saberem ficar quietos em um quarto”. Assim como não se pode esquecer de que muitos jovens atuais se trancam em seus quartos praticamente casados com a ausência, limitando-se a devaneios pelos mundos do  virtual propiciados pela internet. 

A web, os celulares, a televisão, tão cotidianos, ressalta Breton, “[…] são meios de estar presente sem estar e de interromper uma relação a seu bel-prazer, simplesmente desligando a tela”. Enfim, “[…] o indivíduo contemporâneo mais se conecta do que se vincula”. Por outro lado, para vencer a fadiga da existência e de seus compromissos, as pessoas muitas vezes “se fazem de morta por um instante”, mas, atenção, “Não é apenas o corpo que se coloca provisoriamente em suspenso, mas o indivíduo todo e, especialmente, seus pensamentos, seus investimentos, sua relação com o mundo”. Essa “[…] vontade de retirar-se, por vezes radical, pontua o antropólogo, também se encontra no outro extremo da vida, na velhice”.

O desaparecer voluntário tem uma vasta e literária tradição. Breton cita vários exemplos, como o  caso da poetisa americana Emily Dickinson, que, aos trinta anos, resolveu não sair mais de casa, com seu quarto praticamente se tornando uma “cela de mosteiro”. O famoso escritor, também americano, H. Hawthorne “[…] também se fechou em um quarto e por doze anos evitou o vínculo social”. De outro grande escritor, Robert Walser, suíço de língua alemã, o antropólogo relata que era “[…] um personagem animado pelo desejo de desaparecer de si, obcecado pela vontade de não mais assumir as obrigações de sua identidade”. Por sua vez, as personagens de Walser “[…] buscam a insignificância […] não ter nenhum objetivo”!

A Breton, nesse ensaio de tantas referências literárias, não passa despercebido o exemplo de Fernando Pessoa, que, aliás, menciona com grande admiração. O poeta, para ele, promove um “[…] multiplicar-se para não ser ninguém”. De fato, multiplicado em seus heterônimos (poetas fictícios tão bons quanto diferentes entre si), o escritor português “[…] cujo sobrenome era Pessoa se desprende da aderência a si mesmo”. Ausência de si, devaneio, insubstancialidade de ser si próprio, flutuação da identidade, eis, em poucas palavras, o “desaparecer de si” que move o poeta nos seus momentos mais criadores, se é que o não move em todos as horas da existência.

Esse “desaparecimento de si” também está presente em muitos personagens da ficção moderna. Breton recorda o caso antológico de Bartleby, o escrevente, de Herman Melville, cuja recusa existencial recorrente manifesta-se na fala monocórdica: “Eu preferiria não” (I would prefer not to)”. Segundo o ensaísta, “O escritório torna-se o eremitério de Bertleby, seu asilo para se precaver contra as desordens do mundo”. Associando-se ao escrivão melvilliano, encontra-se Oblomov, personagem do romancista russo Ivan Gontcharov, que, por assim dizer, “se apaga mantendo as aparências”…

Naturalmente, há diversos motivos para desaparecer, e, de resto, nem todo desaparecimento é para ser definitivo. Mais de uma vez, Breton nos chama a atenção para esse caráter de metamorfose, senão de renascimento, que está implicado em diversos tipos de desaparecimento, excetuados aqueles de caráter patológico, como os estados depressivos, psicóticos, anoréxicos e demenciais. Como quer que seja, não deixa de ser curioso que haja uma espécie de gestão para que desaparecer e reaparecer tenham êxito. Sim, há desaparecimentos com método! Vale a pena o registro do ensaísta: “Muitos sites da internet são consagrados ao desaparecimento de si e aos estratagemas bem-sucedidos para uma eficaz supressão de si ou para recomeçar uma existência alhures sob outro estado civil ou guardando o antigo em total discrição. Muitos livros sobre esse tema foram publicados”. Ao lado dessas orientações, não por acaso, prospera o negócio da falsificação de documentos que tanto ajuda migrantes, fugitivos e exilados em seus conflitos decorrentes de novas identidades.

Não obstante a luta fratricida entre Tânatos e Eros, entre criação e destruição, tão bem entrevista por Freud, e apesar dos casos patológicos, Breton nos deixa uma mensagem de confiança, com a qual concluo (antes que me bata o desejo de desaparecer!) esta resenha: “O ‘branco’ [outro nome para o momentâneo desaparecimento de si] não é absolutamente uma loucura, mesmo que provisória, pois o indivíduo nunca cessa de ser ele mesmo. Embora ele esteja em uma espécie de descanso das representações sociais ordinárias, ele também sabe agir quando as circunstâncias o exigem e sabe retomar a existência em suas próprias mãos após alguns eclipses. Em outras palavras, ele sabe o que faz desfazendo-se de si mesmo”.