Fausto e Mefistofeles

Fausto e Mefistofeles

 

Embora o Fausto de Goethe seja amplamente celebrado como um clássico literário, poucos leitores terão se dado conta de suas percepções penetrantes sobre os duradouros problemas sociais da economia moderna. O erudito economista suíço Hans Christoph Binswanger (1929-2018), que foi meu amigo, analisa Fausto através das lentes da economia e amplia nossa compreensão desse épico explicando a preocupação de Goethe com questões financeiras. Seu livro (Gelt und Magic), publicado em 1985, traduzido para o inglês (1987) como Money and Magic, interpreta Fausto como um aviso sobre os perigos da busca de riquezas sem fim. Trata-se de um recurso valioso para historiadores sociais e culturais, e economistas.

Fiquei conhecendo Binswanger graças a nosso pranteado amigo comum Herman Daly (1938-2022). Em abril de 1996, trouxe ambos a Olinda para um seminário de trabalho sobre meio ambiente, desenvolvimento sustentável e políticas públicas. Eles, mais um ilustre grupo de vinte pesquisadores, vieram para o evento por mim organizado no âmbito da Fundação Joaquim Nabuco, com recursos que captei no Ministério do Meio Ambiente, graças ao apoio decisivo do ministro Gustavo Krause, também meu amigo. Raul Jungmann, presidente do Ibama à época, outro amigo, classificou o grupo como um dream team. 

Binswanger, em Money and Magic, chama a atenção por seu olhar inovador, sendo por isso redescoberto até por artistas e ativistas mais jovens (por exemplo, o original artista visual britânico-alemão Tino Sehgal), que frequentemente o citam como uma influência. A sabedoria do trabalho de Bingswanger é que ele reconheceu desde o início que o crescimento sem fim é insustentável – mesma visão do romeno-americano Nicholas Georgescu (1906-1994). Binswanger vai além de Georgescu, que trabalha com a Lei da Entropia, e considera a insustentabilidade tanto em termos humanos quanto planetários. O foco atual no pensamento econômico dominante, ele argumenta, reside no fator trabalho e na produtividade; muito pouca ênfase sobre recursos naturais e intelectuais. A dependência de um crescimento sem fim, tal como a crise que sempre surge no final de cada ciclo de mercado altista (como em 2008), deveria nos ensinar, é irreal.

Interessava a Binswanger investigar as semelhanças e diferenças entre valores estéticos e econômicos por meio de um exame da relação histórica entre economia e alquimia, que ele tornou tão interessante como (a princípio) soa estranho. Em Money and Magic, ele mostra como o conceito, de conteúdo algo fantástico, do crescimento ilimitado constitui uma herança do discurso medieval da alquimia – a busca por um processo que pudesse transformar chumbo em ouro. Um dos focos da pesquisa de Binswanger foi o poeta Goethe (1749-1832), especialmente por seu papel na formação da economia social quando ministro das finanças na corte de Weimar. No Fausto de Goethe, o personagem homônimo pensa em termos de progresso infinito, enquanto Mefistófeles reconhece o potencial destrutivo de tal ideia. No início da segunda parte da longa peça, Mefistófeles exorta o governante de um império que enfrenta a ruína financeira por causa dos gastos excessivos do governo, a emitir notas promissórias, na presunção de resolver assim seus problemas de dívida.

Binswanger era fascinado pela lenda de Fausto, como muitos da tradição alemã, desde a infância. Durante seus estudos, descobriu que a introdução do papel-moeda por Goethe em sua peça foi inspirada na história do economista escocês John Law (1671-1729), também um jogador inveterado, que, em 1716, foi o primeiro homem a estabelecer um banco, na França, que emitia papel-moeda. Surpreendentemente, após a inovação de Law, o duque de Orleans se livrou de todos os seus alquimistas porque percebeu que a disponibilidade imediata de papel-moeda era muito mais poderosa do que qualquer tentativa de transformar chumbo em ouro.

Binswanger também conecta dinheiro e arte de uma maneira inovadora. A arte, segundo ele, é baseada na imaginação e faz parte da economia, enquanto o processo de criação de dinheiro de um banco na forma de notas promissórias (títulos) ou moedas está ligado à imaginação, uma vez que se baseia em uma ideia prospectiva de concretizar algo que ainda não existe. Ao mesmo tempo, uma empresa se imagina produzindo um determinado bem e precisa de dinheiro para realizá-lo, então pega um empréstimo em um banco. Se o produto for vendido, o dinheiro “imaginário” que foi criado no início tem uma contrapartida em produtos reais.

Na teoria econômica clássica, esse processo pode continuar indefinidamente. Binswanger reconhece em Money and Magic que tal crescimento sem fim exerce um fascínio quase mágico. Haja vista clichês como Espetáculo do Crescimento, Programa de Aceleração do Crescimento. Money and Magic produz uma maneira de pensar sobre os problemas do crescimento capitalista desenfreado, encorajando-nos a questionar a teoria econômica dominante e a reconhecer como ela difere da economia real, da ecomomia das coisas, a que nos interessa. Mas, em vez de rejeitar o mercado no atacado, Binswanger sugere maneiras de moderar as demandas envoldidas. Assim, o mercado não precisa desaparecer ou ser substituído, mas pode ser entendido como algo a ser manipulado para fins humanos, em vez de obedecido. 

Outra forma de interpretar as ideias de Binswanger é a seguinte: durante a maior parte da história humana, um problema fundamental tem sido a escassez de bens e recursos materiais, e assim nos tornamos cada vez mais eficientes em nossos métodos de produção e criamos rituais para consagrar a importância de objetos de nossa cultura. Menos de um século atrás, os seres humanos fizeram uma transição que mudou o mundo por meio de sua indústria voraz. Agora habitamos um mundo em que a superprodução de bens, e não sua escassez, é um de nossos problemas mais fundamentais. No entanto, nossa economia funciona incitando-nos a produzir cada vez mais a cada ano que passa. Por outro lado, exigimos formas culturais que nos permitam lidar com o excesso, e nossos rituais estão mais uma vez sendo direcionados para o imaterial, para a qualidade e não para a quantidade. Isso requer uma mudança em nossos valores.

O primeiro-ministro da Malásia, em 1996, ficou revoltado com os alquimistas do mundo moderno, de quem o investidor húngaro-americano George Soros seria um exemplo autoconsciente, que obtêm grande riqueza sem esforço. Evidentemente, como estabelece o livro curto, mas brilhante, de Binswanger, Goethe antecipou totalmente seu surgimento e as consequências desastrosas de suas ações há mais de 250 anos. Como é apropriado encontrar na ficção toda a feitiçaria, delírio e imaterialidade do capital financeiro!