Ainda faltam alguns detalhes da proposta do governo, de novas regras fiscais, que substituirá o Teto de Gastos. Mas o que foi anunciado até agora pela equipe econômica do Governo, Fernando Haddad e Simone Tebet, transmite confiança numa trajetória consistente de equilíbrio fiscal. O Teto de Gastos definido em 2016 foi desfigurado por atalhos e exceções que, no fundo, desmoralizaram o instrumento de contenção das despesas primárias. Como era previsível, o Teto de Gastos não seria sustentável se não fossem realizadas reformas estruturais que, ao longo dos anos, reduzissem a inércia de crescimento das despesas primárias, principalmente das obrigatórias, que representam 90% delas. Com exceção da Reforma da Previdência, cujo resultado se alonga no tempo, nada mais foi feito para conter a expansão das despesas primárias. Mesmo sem a crise decorrente da pandemia, o teto de gastos seria insustentável sem as reformas, principalmente, a reforma administrativa.
O novo arcabouço fiscal parece tão simples quanto o teto de gastos, o que é muito bom. A ideia que circulava, de que seria utilizada uma equação de três variáveis – resultado primário, limite de gasto e endividamento – para orientar a política fiscal, tinha tudo para não funcionar e ainda permitiria manobras do governo para soltar as despesas. Embora defina intervalo para o resultado primário, e um limite para o endividamento, o instrumento principal é a relação entre eventuais adicionais de receita e aumento da despesa. A nova regra tem duas vantagens em relação ao Teto de Gastos. Em primeiro lugar, ao contrário deste, que congelava, em termos reais, o total dos gastos primários, o modelo proposto permite um aumento das despesas desde que haja crescimento da receita, e sempre numa proporção de, no máximo, 70% da receita adicional (mesmo assim, este aumento das despesas deve flutuar dentro de um intervalo de 0,6% a 2,5%). Se a receita não subir, os gastos ficam estacionados em termos reais. Este limite de aumento das despesas em até 70% do crescimento das receitas permite gerar, a cada ano, um pequeno saldo que reduziria o déficit primário e, no médio prazo, criaria um superávit. A segunda vantagem do novo arcabouço fiscal é precisamente a utilização de uma trajetória de médio prazo, que tolera um pequeno aumento do endividamento (relação dívida/PIB) nos primeiros anos, apontando para uma trajetória consistente de estabilização, na medida em que a União comece a registrar superávit primário.
O teto de gastos funcionava como um “cavalo de pau”, uma interrupção brusca das despesas primárias (em termos reais) que obrigava a um rigoroso planejamento e reordenamento do orçamento, que foi praticamente impedido pelos elevados gastos obrigatórios. Considerando as enormes pressões das demandas sociais acumuladas nos últimos anos e o baixo nível de investimento público em infraestrutura e inovação, que comprometem a qualidade de vida e a competitividade da economia, é necessária uma flexibilização das despesas no curto prazo. A confiança da sociedade e dos agentes econômicos na regra fiscal proposta vai depender, em todo caso, do alcance das metas prometidas de superávit primário e da estabilização do endividamento nos próximos anos.
O aumento da receita pode ter duas fontes: o crescimento do PIB-Produto Interno Bruto e o aumento de impostos sobre a base econômica. O ministro Haddad sugeriu que pretende promover uma elevação da arrecadação, cobrando impostos de setores da economia que, segundo ele, não pagam imposto, embora assegurando que não serão criados tributos nem haverá elevação de alíquotas. Ele não falou, mas existem propostas para a redução da renúncia fiscal de vários segmentos econômicos, que chegaria a mais de 400 bilhões de reais, e para cobrança de impostos sobre distribuição de dividendos. Neste caso, o problema sai da alçada econômica para o terreno da política. Tudo indica que o Governo não terá muitas dificuldades para aprovar a proposta do arcabouço fiscal, mas enfrentará poderosos lobbies, se pretender elevar a carga tributária, mexendo nos subsídios de alguns setores da economia e tributando dividendos.
Verdade que o “arcabouço fiscal” é boa notícia e foi bem recebido por boa parte dos agentes econômicos. Mas a previsão de aumento de receita por eliminação de privilégios indevidos não é aumento de carga tributária. Há privilégios tributários que existem sem argumentação técnica que mostre que sejam de interesse nacional, há incentivos que podem ter tido validade algum dia e hoje estão caducos, há regimes especiais para setores e contribuintes criados para permitir que grupos de alta renda paguem menos impostos, e fazem com que a carga tributária seja maior para renda menor. São leis e regulamentos que precisam ser mudados. Além de fraudes, e elisão fiscal que “esperteza jurídica” propicia, junto com ambiguidade de leis. O Ministro da Fazenda Fernando Haddad pretende reduzir esses privilégios. Não pode permitir que isso seja chamado de “aumento da carga tributária” e nem de “reforma tributária”. Não é aumento de tributos, é diminuição de privilégios. Reforma tributária é matéria separada desse tipo de combate a privilégios sem justificativa, obtidos por quem tem lobby mais ativo.