No dia 7 de setembro de 1974, o jornal Última Hora, do Rio, publicou entrevista com Julinho de Adelaide. Sobre música popular brasileira. E sobre como o entrevistado melhor compunha. A entrevista foi publicada, lida e arquivada.

Só que a entrevista era uma fantasia. O entrevistado não existia. Vivia-se a época impermeável da ditadura. Julinho de Adelaide foi uma invenção de Chico Buarque. Perseguido pela censura, o compositor não conseguia aprovar suas músicas na repartição oficial. Resolveu, então, apresentar-se com outra fatiota musical. Aprovou duas ou três canções. E, como no patropi nada permanece em segredo, a armação foi descoberta.

Pois bem. Chico Buarque, hoje, esteve em Sintra, Portugal. Não recorreu a Julinho de Adelaide. Não precisava. Porque foi recebido por dois presidentes de República, o de Portugal e o do Brasil, e um primeiro-ministro, português.

O prêmio Camões foi criado em 1988, destinado a distinguir escritores lusófonos. Uma forma de aproximar as culturas dos dois países. E de valorizar a língua portuguesa. João Cabral de Melo Neto foi o primeiro brasileiro a recebê-lo. Depois Jorge Amado, Ferreira Gullar e outros mais. De Portugal, José Saramago. De Moçambique, Mia Couto. Só gente fina.

O prêmio foi concedido a Chico Buarque em 2019. Mas, somente entregue em 2023. Porque o então presidente brasileiro recusou-se a assinar o diploma que concedia a horaria. Por se tratar de Chico. Uma grosseria. De quem confunde dever institucional e ira pessoal. Deixa pra lá. Melhor. A festa foi maior.

Em seu discurso, Chico Buarque, como sempre, fez do talento arte valiosa de falar. E, falando, dizer. E, dizendo, contar. E, contando, cantar. Pois, sobre Vinicius de Moraes, amigo de seu pai, disse que a palavra cantada é mais sensual. Pode ser. Mas, no caso de escritores compositores, como ele, Chico, a palavra, falada ou cantada, torna-se puro brilho, encantada.

Em suas palavras, ditas em Sintra, Chico, mais uma vez, foi dois Chicos: o Chico lírico e o Chico social. Sendo o compositor popular, que é. Foi o Chico lírico ao acentuar sua vocação transatlântica. Pondo um pé em imenso Portugal. E foi o Chico social ao recordar seus antepassados negros e indígenas, açoitados e açoitadores. Humilhados e ofendidos.

Décadas atrás, um jornalista brasileiro usava, em seus artigos, a expressão Portugal, meu Avôzinho. Era uma forma carinhosa de destacar as raízes étnicas e históricas que unem os dois povos, brasileiro e português. Olhando, na tv, as cenas do evento de premiação, em Sintra, percebi a alegria e o acolhimento com que as autoridades portuguesas organizaram a solenidade. De tal modo que parecia mesmo que se tratava de um neto. Talentoso. Que vinha à casa do avô receber distinção a que tinha direito.

E eu, cá do meu canto, sem palavras, olhei o rio de minha aldeia. Não é o Tejo. Mas é o rio de minha aldeia. Olhei, orgulhoso. Porque, afinal, o Brasil compareceu de forma digna no cenário internacional. Como merece. À altura do engenho e da civilidade de seus filhos.