Quando penso na Vichy daqueles dias não tão distantes, reato com facilidade com uma sensação de desalento e abandono. Durante os dias que estive lá, não tive sequer um momento de conexão emocional com a cidade. Pior do que isso, com absolutamente ninguém de lá. Giovanna até que tinha tentado criar essa ponte, sabendo o quanto isso representa para mim. “Da próxima vez que eu for comprar flores, você vem comigo. Não somente a variedade de mercadoria é magistral, exuberante sob quaisquer padrões, como também a vendedora é uma senhora encantadora. Imagine que essas hortênsias foram presente dela. Ah, outra figura que você vai adorar é a do vendedor do quiosque do carrossel, onde eu compro o teu jornal. Ele tem bigode como o de Salvador Dali, sabe? Convenhamos, para uma cidade conservadora como esta, é um feito e tanto.”
Não pude ir à livraria no mesmo dia da partida de Giovanna. Nem no seguinte. Quando me senti finalmente em condições de caminhar, de descer as escadas sem segurar o corrimão com ambas as mãos, voltei até “À la page” para pedir um novo exemplar, que só chegaria três dias depois, visto que não fora reposto desde a minha compra. De qualquer forma, o projeto de deixar a cidade já estava delineado. Na verdade, sentia falta de Paris, de estar numa cidade onde pudesse fazer uma leitura rápida dos acontecimentos. O ano vinha sendo até então de paradas em cidades secundárias, salvo Paris e Belgrado, ambas por poucos dias. Girona, Timisoara e Vichy eram modorrentas demais, cada uma à sua maneira. No jornal “La Montage”, as notícias sobre o vírus chinês não tinham arrefecido. Belleville, um reduto de gente de Wuhan, já estava hibernado.
No dia que recebi o informe de que meu exemplar novo de “Mazal Tov” tinha chegado à livraria, não pude ir pegá-lo. Por uma junção de elementos, ligados tanto à minha natureza quanto aos fatos objetivos, eu comecei a perceber que se voltasse para o Brasil até o fim de fevereiro, era prudente sair da Europa com a passagem de volta no bolso. Se a propagação daquele vírus começasse a galopar como era aparente, melhor seria acompanhá-lo do Velho Mundo, onde eu me moldaria a uma vida mais regrada. Uma alternativa a ser ponderada era sacramentar a vinda para o Leste do casal amigo Luis Eduardo e Edna. Com eles, teria com quem passar os momentos agradáveis que eu estava devendo a mim mesmo, além de ter interlocutores sensatos para discutir aquele estranho cenário. Voltei para Paris sabendo que esquecera alguma coisa. Era o livro.
No caminho de volta, eu me condenava por ter pago antes de recebê-lo. A vendedora ainda insistira para que eu só pagasse quando fosse buscá-lo. Na França, a palavra vale, ninguém exige pagamento antecipado. Agora o dinheiro não seria mais recuperável. Eu não voltaria a Vichy por hipótese alguma, muito menos por causa de 20 euros. Mesmo assim, aquele desperdício era contrário aos meus princípios. Chegando a Paris, peguei metrô para a estação Cardinal Lemoine e me hospedei num hotel cujos quartos eram minúsculos. Com fome, comprei comida num pequeno chinês que ficava perto da Place Monge. Só ao entrar lá eu me dei conta de que os restaurantes de comida cantonesa não estavam muito concorridos. A nuvem negra que pairava sobre a China fazia com que todo mundo os evitasse. Eu fora imprudente.
Uma ou duas noites depois, marquei uns queijos e vinhos com o teatrólogo Rui Frati e a tradutora Rosa Freire d ?Aguiar, num café da Bastilha. Era uma noite quente de inverno. Era possível que estivéssemos a mais de dez graus. Cada um falou dos seus projetos. Rui estava de viagem para a Itália e deslindou recordações de Santos, sua cidade de nascimento; depois falou de Augusto Boal, de cujo Teatro do Oprimido ele se via como o sucessor. Rosa falou de mais um projeto hercúleo que abraçara, no caso o de traduzir Proust, o que faria a quatro mãos com o jornalista Mario Sergio Conti. Em paralelo a isso, pretendia lançar os Diários de Celso Furtado, de quem era viúva. Tudo isso me fazia ver que eu estava meio sem utopia. O livro que começara a escrever, cujo arcabouço discutira com Homero Fonseca, continuava parado, depois de boa largada.
Eixo central da minha vida à época, “A noiva japonesa de Boris Neuman” – título depois abandonado – nascera de uma conversa que eu tivera em São Paulo com os amigos da literatura. Pensando em qual seria o grande romance da Segunda Guerra Mundial, o dramaturgo Leo Lama falou de “As benevolentes”, de Jonathan Littell, livro que me fascinara. Meses mais tarde, num almoço no apartamento de Joca Souza Leão, falei a Homero Fonseca que, entre outras coisas mais mundanas, devia a mim mesmo um romance maiúsculo, de fôlego. Ele se prontificou a me ajudar. Semanas depois, voltei ao Nordeste para um casamento em João Pessoa. Na volta para o Recife, onde pegaria um voo para São Paulo e depois para Chicago, tive o desprazer de ver uma imensa carreata bolsonarista em Boa Viagem. Por conta dela, quase perdi o avião.
Cheguei a Chicago embalado para trabalhar e esquecer o Brasil, que me consumia a alma. Se um homem daquele ganhasse as eleições, seria sintomático de alguma coisa muito ruim. Em Illinois, mal sabia eu que o meu primo que mora lá com a família, também era um devoto do capitão, cuja ignorância e truculência ele muito admirava. Nas três semanas que passei lá, no agradável bairro de Skopje, engoli minhas convicções políticas – se é que sobrara alguma -, e todo dia ia de trem para a biblioteca de Chicago ou para as mesas da Barnes & Nobles da Universidade de DePaul. Ali fiz em algumas horas o desenho do livro que tinha em mente, que não tardou a receber a chancela de Homero. Quando voltava para casa e tinha que me deparar com assuntos prosaicos, agravados por uma facada, o livro pretextava não ser perturbado. Mas isso foi em 2018.
Em fevereiro de 2020, na véspera de voltar da França para o Brasil, comprei meu último exemplar de “Mazal Tov”. Só faltava ler a terceira e última parte. Pensei em trocá-lo, mal o terminei. Mas a troca não se consumou. Isso pela simples razão de que eu coloquei o livro sobre o aquecedor. Ora, como a capa era coberta por uma fina película plástica, se formaram bolhas que tornavam a devolução inviável. Quando embarquei de volta para ficar uns dias no Brasil, “Mazal Tov” veio comigo. Entrando no meu apartamento, deixei-o na mesa. Menos de uma semana mais tarde, embarquei de volta para a Europa, sem saber que só voltaria à minha casa 14 meses mais tarde. E que, quando isso viesse a acontecer, aquela capa de Dan Zollmann em que um judeu hassídico passeava por Antuérpia, me faria um aceno eloquente da vida de antes.
O que eu tampouco sabia é que ele também seria uma ponte para o mundo do meu amanhã, passando milhas adiante do projeto do meu próprio livro, que nascera concretamente em Chicago. Mas também que, de certa maneira, “Mazal Tov” me daria elementos para que eu o julgasse um pouco como meu. Isso eu conto na próxima semana.
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