Etnocentrismo - autor não identificado

Etnocentrismo – autor não identificado

 

Conta-se que uma rica matrona de Boston costumava dizer aos que a incitavam a viajar: “Mas viajar para quê, se eu já estou aqui?”. Sem se dar conta, ela expressava o etnocentrismo que viaja na cabeça de muita gente; não viaja, faz morada. Etnocentrismo, como se sabe, é o nome que os antropólogos, conforme o “Dicionário Houaiss”, conferem a uma “visão de mundo característica de quem considera o seu grupo étnico, nação ou nacionalidade socialmente mais importante do que os demais”. Não por acaso, historicamente muitos povos se julgaram “o povo”, certos de que estavam numa evidente centralidade.  A postura da matrona de Boston, num mundo que vem se tornando uma chatíssima aldeia global, de vez  em quando dá o ar de sua graça sem graça.

No Brasil, o caso mais recente de surto etnocêntrico público foi o de um desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná. Na empolgação de sua oratória, o eminente jurista disparou que o Paraná era superior culturalmente ao Norte e ao Nordeste do País. A matrona de Boston não faria melhor. Depois, ele se desdisse, pediu desculpas, mas a obra já estava feita e com efeito vinculante. Com certeza, não será o último prócer a se sentir tão naturalmente por cima da carne-seca. Sua visão paroquial e inculta esconde muitos males. Um desses males é o desrespeito ao próprio país onde o acaso inscreveu seu nascimento e sua morada. É muito provável que o ilustre jurista fuja da pobreza e dos pobres como o diabo foge da cruz. Norte e Nordeste são as regiões mais pobres do Brasil, o que é fato público e notório, mas que não desmerece a cultura de ambas as regiões. Por sua vez, o Paraná, conforme as palavras do desembargador, tem um nível cultural bem superior, do que não parece dar prova o próprio indigitado.

Que o magistrado seja perdoado por seu infeliz comentário, pois até o papa Francisco também deslizou num etnocentrismozinho, às avessas… Quando foi eleito, o bom Bergoglio apareceu na sacada do Vaticano dizendo a todo o orbe que tinham escolhido um “papa do fim do mundo”… Entende-se a irônica brincadeira, mas a Argentina não é “o fim do mundo”, apesar do peronismo e suas sequelas populistas! O papa Francisco parece ter seguido a regra de que só os nativos têm o direito de falar mal de seus lugares. Os cariocas, tantas vezes etnocêntricos (e não sem suas razões), costumam, por exemplo, meter o pau no Rio de Janeiro, mas vá você, forasteiro, fazer o mesmo… É assim que a banda toca, e o etnocentrismo é sempre boa música para os da própria terra… Enfim, não fosse a palavra “etnocêntrico” um tanto pedante ou “superior” como o Paraná, bem que poderíamos ter um novo dito ao gosto do povo: de etnocêntrico e de louco, todos nós temos um pouco.

Elogiando literalmente um dos principais solos nordestinos, o massapê, Gilberto Freyre, no seu pioneiro, ecológico e poético livro “Nordeste”, faz um simpático jogo de palavras ao escrever: “[…] não é bairrismo, como tantas vezes se tem levianamente insinuado […] Será talvez ‘barrismo’”. O fato é que, mesmo com “animus jocandi”, não deixa de haver “bairrismo” no “barrismo” freyriano, sendo certo que o primeiro é, por assim dizer, uma das faces mais populares do etnocentrismo. 

O bairrista geralmente, como se sabe, não só exagera o sentimento nativista por sua terra, mas desenvolve uma atitude hostil para com as pessoas de outros locais. É nesse caso que se enquadra o desembargador paranaense, tão entusiasmado com o seu “superior” Paraná quanto preconceituoso com o Norte e o Nordeste do País. 

Sugiro que o sulino jurista sofra uma delicada pena: que leia Gilberto Freyre, não apenas para aprender história pátria, mas para amaciar o seu etnocentrismo, medindo as palavras, observando a pluralidade do mundo e da nação brasileira. Que ele vá até as palavras finais de “Nordeste” e tente “[…] pensar nas ostras que dão pérolas”. Ali descobrirá com Freyre que há “Civilizações mais saudáveis, mais democráticas, mais equilibradas quanto à distribuição da riqueza e dos bens. Mas nenhuma mais criadora do que ela [a civilização do açúcar no Nordeste], de valores políticos, estéticos, intelectuais”.