Liberalismo ou neoliberalismo, como queiram, muito mais que uma teoria nas ciências ditas sociais, é uma ideologia. Como tal, tem suas bases fundantes, seus dogmas, que em Economia podem ser traduzidos pela lógica do Estado Mínimo e pela não intervenção estatal na concorrência capitalista, nos ditos mercados que se autorregulariam e com isso atingiriam a maior eficiência possível.
No entanto, não é algo estático no sentido de imutável, deve-se ter em mente que seus defensores não são ingênuos. Vão adequando o discurso aos tempos, à realidade que enfrentam, aos fracassos que lhes são inerentes. Há mudanças de táticas para atingir os mesmos objetivos, mantendo suas convicções.
Vejo com preocupação artigos que camuflam isso. Artigos que expõem posicionamentos ligeiramente alterados, assumindo, inclusive, teses muito simpáticas aos leitores, que não lhes eram próprias, mas que têm por base manter a essência do paradigma de referência. Especificamente, no momento, preocupam-me posições que aproveitam o discurso da falta estrutural de recursos para a área de pesquisa e inovação para disseminar convicções que, em essência, levariam à retirada do Estado na formulação de políticas públicas setoriais, principalmente a industrial.
Trabalho com política de ciência, tecnologia e inovação há quase cinqüenta anos. Em raríssimos momentos dessa trajetória vi a área ser contemplada como prioritária, ter um orçamento adequado, ser realmente considerada como alicerce do desenvolvimento. Uma realidade que sempre lutamos para modificar, alertando sobre sua importância para o desenvolvimento e para um melhor posicionamento do País.
Em artigos recentes, de autores com viés liberal, a defesa dessa ideia tem passado por criar um antagonismo com as políticas setoriais. Os defensores do ideário neoliberal defendem que é permitido ao Estado ampliar sua participação orçamentária na busca de condições melhores de competitividade, na busca de inovação, mas, em compensação, fazem severas críticas à participação do Estado em políticas setoriais, políticas que deem sustentação ao avançar em segmentos específicos e estratégicos. Critica que no Brasil se concretiza, principalmente, na negação de políticas que visem à busca de uma retomada do dinamismo do setor industrial baseada em qualquer tipo de apoio, como subsídios ou incentivos fiscais.
Alegam que é retrógrado basear essa retomada nesses instrumentos, que esse setor não é mais chave para o desenvolvimento, que no mundo todo os serviços avançados são o setor chave, que o importante são políticas horizontais que diminuam o “custo Brasil” e apoiem a melhoria da competitividade para toda a economia, e não para um setor específico.
Parece ser moderno e atual, para os leigos passa como algo que tem racionalidade. Ledo engano. Há um equívoco de origem que desestrutura o argumento.
Entendamos o que são Políticas Setoriais. Em outras palavras, são barreiras à entrada que permitem organizar setores estratégicos para a dinâmica de crescimento do país, o que não ocorreria caso se deixasse na dita livre concorrência. Têm por base um projeto de país desenhado e a necessidade de mudanças estruturais no setor produtivo da nação que lhe dê sustentação. Considerando a competitividade internacional, que permita termos padrões de produtividade compatíveis e alavancadores para nossa inserção em melhor posição nesses mercados.
Estamos passando por um momento de transformações rápidas e profundas a nível mundial. O setor de serviços passa a ter importância estratégica desde que alicerçado nessa nova base, nas novas tecnologias. Para isso, é fundamental que se consiga entrar neles. Só com uma indústria modernizada se consegue isso a custos compatíveis com a concorrência a enfrentar.
Para tal, é necessário ter produtividade em novos ramos industriais que vêm surgindo e são a base da dinâmica produtiva. São eles que garantem equipamentos básicos e componentes para o crescimento em condições realmente competitivas. Os países que abrem mão desses segmentos industriais passam a ter custos incompatíveis com a nova dinâmica, ou depender fortemente do suprimento externo, a preços e condições nem sempre favoráveis, aumentando o fosso de produtividade frente aos líderes do mercado.
Vale salientar que, no caso específico do Brasil, a matriz produtiva é fortemente baseada em setores de baixa e média tecnologias. Nossa participação em extratos de alta tecnologia é diminuta, o que não permite que participemos da concorrência internacional, em muitos espaços, altamente tecnificados.
Nosso setor de serviços é fortemente concentrado no comércio varejista tradicional e no peso das pequenas e médias empresas familiares, que é muito grande. Nossos avanços na manufatura 4.0 são restritos, concentrando-se fortemente nas filiais das grandes empresas multinacionais. Repensar a adequação de nossa matriz produtiva e de serviços é um imperativo necessário.
Fazer política industrial passa por definir em que setores precisamos entrar, em que setores temos vantagens a explorar, em que setores nos é conveniente investir para construir o futuro do Brasil. E isso não é, como dizem, dar privilégio. É uma construção necessária para um futuro com uma inserção mais efetiva.
Se nossas lacunas estiverem em setores de maturação de longo prazo, setores em que haja dificuldade de a iniciativa privada se interessar, cabe ao Estado sua inserção, sua participação efetiva, inclusive assumindo a produção.
Em áreas em que o privado pode prosperar justificam-se mecanismos de incentivos fiscais e creditícios, subsídios, ou mesmo barreiras não tarifárias, enquanto estes setores se consolidam no país. Esta é a lógica, este é o sentido real para a sustentação de um Projeto Nacional de um país competitivo.
O discurso que tem sustentação apenas em apoiar a inovação de uma maneira geral e amorfa, baseado principalmente no aumento de recursos para o setor, para evitar qualquer distorção que privilegie setores novos ou consolidados, é falso. Evita fazer política pública e tem por base que o mercado se autorregula, que o Estado é agente ilegítimo. É posição ideológica que o vê como um agente nocivo à concorrência.
Evidentemente, se querem melhorias nos orçamentos da área de CT&I, claro que se buscam lógicas e instrumentos que permitam a diminuição do “custo Brasil”, mas fundamental é associar a isso uma política que tenha em mente quais setores são estratégicos para aumentar a competitividade, assim como apoiar setores que venham a minorar os problemas que temos nas áreas de emprego ou renda.
Lobo em pele de cordeiro não interessa, temos que entender a complexidade da economia brasileira e tratá-la com uma visão muito mais larga, onde o Estado tem papel fundamental. Políticas setoriais e horizontais, todas as necessárias, são meios válidos para alcançar um país mais competitivo. Devem, sempre que possível, ser usadas para que possamos ter um país mais bem posicionado no cenário nacional e internacional.
Abraham Sicsú relata a utopia que aparentemente prevaleceu nos anos cinquenta (do século XX), as teses da “indústria nascente” do tempo dos cursos de TDE da CEPAL. Terá algum dado ou fato, alguma experiência histórica de que mais intervenção estatal na produção, mais favorecimento (fiscal e creditício) a setores definidos pelo Estado como estratégicos, mais proteção contra a concorrência externa, resultaram em mais desenvolvimento industrial? E os limites fiscais? Na utopia dos anos cinquenta foram ignorados limites para as variáveis receita e despesa pública. E assim ignorou-se, como já disse Mailson da Nóbrega, que política expansionista (via subsídio ou via investimento público) não é para quem quer, é para quem pode. E assim o PAC da Presidente Rousseff deu no que deu, a recessão de 2014-16.